Cláudio Jaloretto
Corecon-DF nº 7364.
Felipe Ohana
Corecon-DF nº 7089.
Sumário Executivo
O fundamento para a reforma administrativa do Estado com foco no Servidor é a preservação do teto de gastos primários (EC 95). O teto de gastos é um problema quando a economia atravessa ciclo econômico, bem como não é adequado para estruturas orçamentárias que apresentam despesas obrigatórias e receitas vinculadas (a exemplo do RGPS).
Na prática, a justificativa do teto é formal. A motivação para desestruturar a função pública é ideológica. Menos Estado é traduzido como Estado mais fraco. O mantra ideológico contra os servidores omite dados e mostra a verdade pela metade.
- Servidores Públicos Federais: Os dados que a opinião pública desconhece:
2.1 o quantitativo
Não consideramos os militares como servidores públicos (art. 142 da Constituição Nacional). Dos 603,3 mil servidores civis federais, cerca de 2/3 estão nas áreas de Educação e Saúde e qualquer rearranjo quantitativo deve envolver essas áreas. Mais de 80% dos servidores ativos tem nível superior ou são mais qualificados.
As comparações com o setor privado precisam levar em conta a diferença na produtividade (qualificação). Da mesma forma, comparações internacionais sofrem do mesmo problema e das diferentes atribuições dos governos centrais. Comparações internacionais têm apresentado fatos sem rigor de análise.
2.2 os valores
Do total de despesas brutas com pessoal (R$319,5 bilhões, em termos oficiais), devem ser retiradas as despesas com pessoal militar e as contribuições patronais, chegando-se ao valor de R$ 183,3 bilhões em 2019. Se retirarmos as despesas com pessoal das empresas estatais dependentes, esse valor cai para R$ 172,2 bilhões. As despesas que não são de gastos com pessoal representam 33,6% do total oficial de R$ 319,5 bilhões. Não está claro se o Banco Mundial tratou os dados de forma correta. Em % do PIB, os gastos caem de 4,01% para 2,53% ao descontarmos os gastos com militares e as contribuições patronais.
O gasto com pessoal é de 23,9% da Receita Corrente Líquida, menos da metade do limite da LRF, de 50%. Se considerarmos apenas o pessoal ativo, esse percentual é de 14,2% da RCL. Onde está a ameaça fiscal? Em quanto se pretende reduzir o gasto, sem desestruturar o serviço público? A questão dos inativos tampouco é um problema. Nosso texto mostra isto.
O conceito de gasto com pessoal em relação à RCL pode ser traduzido para o setor privado como despesas de pessoal e encargos em relação ao valor adicionado bruto. Dados da CVM mostram que esta relação, na média das empresas consideradas, é de 18,6%, superior ao da relação encontrada para os servidores ativos do setor público federal.
Diante desse quadro, indaga-se onde querem colocar o setor público federal? Os servidores públicos federais que custam à sociedade 2,53% do PIB são considerados a origem de toda a pobreza nacional e de toda a desigualdade social. A reforma administrativa é muita ideologia e poucos fatos.
- Fundamento Atual para a Reforma do Estado com Foco no Servidor
A literatura econômica, de forma consistente, apresenta fatos estilizados que sustentam a relação entre o quadro das finanças públicas e expectativas sobre a economia. Na atual situação, as restrições fiscais são impostas pelo denominado Teto de Gastos Primários, em conjunto com a meta de resultado primário. O teto, supostamente, limita a tendência a se acomodar, politicamente, aumento nas despesas por meio de promessas de reajuste na arrecadação, no âmbito orçamentário. O teto, portanto, traria credibilidade e previsibilidade à política fiscal e, por consequência, à economia nacional.
Um dos problemas para o teto está no ciclo econômico. Na Finlândia, em 2003, foi aplicada a política, comteto multianual, em que se deixavam de fora todos os itens de despesa sensíveis ao ciclo, bem como despesas com receitas vinculadas, onde o setor público é mero repassador de recursos. No Brasil, podem ser citadas diversas despesas com esta característica, por exemplo o Regime Geral da Previdência.
No Brasil, a Emenda Constitucional 95 de dezembro de 2016 não reconheceu as despesas ligadas ao ciclo econômico e as circulares (onde o setor público é mero intermediário, sem opção de realocação). A razão aparente foi estabelecer uma unidade de medida fiscal em que as despesas obrigatórias, bem assim as circulares, figurassem como ameaça no novo painel de austeridade. Na prática, a intenção seria destacar a necessidade de se esvaziar a despesa pública, atuando-se sobre os pagamentos do regime geral da previdência (o principal tipo de despesa circular), uma artimanha para engrossar o clamor pela reforma previdenciária. Os engenheiros da EC 95, nada obstante, não amarraram as mãos do administrador público, as despesas nascidas de créditos extraordinários ao orçamento foram retiradas do teto, a exemplo das despesas fiscais relacionadas à pandemia do Corona vírus.
Todo este comentário para se chegar à questão dos servidores públicos. O teto segue tendo a função de apontar emergências fiscais e suas as causas. Em 2019, era o regime geral da previdência (aí incluída a previdência dos servidores). Em 2020, com olhos em 2021, o terror fiscal advém das despesas com servidores públicos. Isto se tornou um mantra e encapsula dados omitidos e verdades pela metade.
II Servidores Públicos Federais: Os dados que a opinião pública desconhece
II.1 O quantitativo
Inicialmente, é de se esclarecer que militares não são servidores públicos (§ 3º do art. 142 da Constituição Federal), portanto não serão considerados, o que não é feito quando “especialistas” discutem a questão dos servidores.
Quadro 1
Quadro 2
Os quadros 1 e 2 detalham os servidores da ativa. Há 603,3 mil servidores civis, sendo que 2/3 deles estão concentrados nas áreas de Educação e Saúde. Assim, qualquer rearranjo quantitativo (a exemplo de redução de carga horária para se aplicar redução salarial) deve necessariamente lidar com pessoal nestas duas áreas politicamente sensíveis, sem o que não haverá efeito significativo da rearrumação salarial. Nos Estados e municípios a estrutura funcional dos servidores não é muito diferente do que se observa no Governo Central[ii]
Cerca de 80% dos servidores ativos têm nível superior (incluindo mestrado ou doutorado) e consubstancia distinção expressiva com relação à qualificação dos trabalhadores do setor privado. Com isso, é preciso ter muito cuidado ao se comparar salários médios entre os dois segmentos, pois há questão de produtividade envolvida. Os recursos de mão de obra não são homogêneos.
Não raro, a campanha ideológica sustenta que o setor público federal é caro e não entrega serviços compatíveis com os custos. É o discurso útil, mas não verdadeiro. O setor público federal brasileiro está entre os mais eficientes do mundo. Um dos argumentos que sustentam, de antemão, a iniciativa da reforma contra os servidores baseia-se em emprestar mérito à remuneração. Este ponto despreza os resultados do Governo Federal no âmbito da estabilidade bancária (Banco Central); no sistema eficiente de arrecadação (Receita Federal); no trato da dívida pública sem pânico na rolagem (Tesouro Nacional); no combate à corrupção (Ministério Público e Polícia Federal) e em outras áreas em que os técnicos atuam sem interferências políticas. O mérito está estampado nestes resultados e é isto que estará em risco, ao se reestruturar a máquina que funciona como deve. Os defensores da reforma administrativa não temem a possibilidade de se retirar o atrativo dos cargos públicos e a eficácia de atuação, do que resultaria um grande desastre. Reformas administrativas devem seguir modelos de aproximação, sem choque abrupto ao cerne da estrutura de funcionamento. O erro que se vai cometer corresponde ao anseio por novidade política. Se colocado na forma de projeto, avaliados os benefícios e os custos, esta iniciativa dificilmente seria aprovada.
Os rearranjos salarial e de estrutura funcional, que se pretende implementar decorrem de assertivas feitas por estudos que apontam os servidores públicos como recebedores de prêmios em comparação ao que se paga no setor privado. A mensagem corresponde a dizer que o pagamento aos servidores é recurso jogado fora.
Ao mesmo tempo, a comparação instantânea esconde diferentes perspectivas nas carreiras. É provável que um jovem profissional com mestrado que trabalhe na assessoria econômica de um banco privado possa ter um salário inferior ao de um jovem equivalente que seja concursado no Tribunal de Contas da União, por exemplo. Acontece que a carreira no setor privado pode oferecer a perspectiva de ganhos futuros superiores aos do setor público. Em outros termos, é de se esperar que a comparação entre o valor presente das remunerações dos dois profissionais aponte vantagem para o setor privado. Este ponto constitui parte da metodologia não trabalhada pelos diagnósticos dos estudos que apontam o servidor como super remunerado.
Ademais, o cálculo da remuneração média do setor público inclui, geralmente, todos os servidores, desde o auxiliar até os detentores de funções estratégicas e os ministros de estado, enquanto que o cálculo para o setor privado exclui as remunerações dos membros de diretoria e de conselhos das empresas, sendo que os mais bem remunerados são tratados como pessoa jurídica e, portanto, os ganhos não são computados como remuneração salarial. Inevitável comentar que muitos do que criticam a estrutura de remuneração do setor público, e o problema que isto representa para as contas fiscais, recebem seus vencimentos como pessoa jurídica e não pagam imposto de renda.
O documento do Banco Mundial “GESTÃO DE PESSOAS E FOLHA DE PAGAMENTOS NO SETOR PÚBLICO BRASILEIRO”: O que dizem os dados”, [iii] avança em observações que merecem nota. Diz o estudo:
- “O Estado brasileiro gastou 10% do PIB com servidor em 2018. Somado com as despesas do regime próprio, chega a 15%”. – Este dado sofre efeito de denominador, uma vez que em 2018 o PIB não havia se recuperado da crise de 2015 e 2016 (em 2018, o PIB retornava ao mesmo patamar de 2015). Ao mesmo tempo, compara estes valores em termos internacionais (há vários países com gastos superiores) como se a qualidade do trabalho fosse igual. Não menos relevante, não é claro, no estudo, se da despesa com regime próprio de previdência, os analistas descontaram os valores de contribuição dos servidores, bem como aqueles a título de contribuição patronal.
- “Servidor público recebe 19% a mais do que trabalhadores no setor privado. Na amostra trabalhada de países pelo banco, esta percentagem chega a 21% (superior). Em 2017, servidores federais ganhavam 96% a mais do que trabalhadores do setor privado”. A discrepância é tão gritante e clama por revisão (suspeita) deste dado. Frente à diferença exuberante, cabe indagar se ajustaram a queda real do PIB de 6,1% no biênio 2015 – 16 e o crescimento de somente 1,3% em 2017, fato que deprime o dinamismo no mercado privado. Cabe indagar como ajustaram competência e qualificação. Como terá sido feita a comparação entre um cargo de diretoria DAS 5 (ordenador de despesa) com função equivalente no setor privado? Um Chefe de Departamento do Banco Central é comparado a que função na área privada? Os trabalhadores no setor privado remunerados como pessoa jurídica foram incluídos na comparação?
- “Em uma comparação de prêmios salariais do setor público em 53 países, o dos servidores federais brasileiros de 96%, aparece como o mais alto da amostra”. Este texto do estudo se refere ao dado de 2017, comentado acima. Além da discrepância, que invoca cautela na aceitação do dado, cabe notar que em países mais avançados, a diferença de qualificação em comparação com os trabalhadores do setor privado (maior produtividade) tende a ser menor. Em outros países menos avançados, é necessário que se compare a qualificação entre os dois tipos de mão de obra. Ou seja, o prêmio é tratado como se produtividade e responsabilidade fossem medidas internacionalmente homogêneas.
Na introdução do texto do Banco Mundial, encontra-se a sentença: “Em dez anos (2007-2017), o gasto com servidores públicos aumentou cerca de 48% em termos reais.” A partir daí, o avanço na leitura, deve ser feito só com muita cautela.
O PIB, neste período, cresceu 17%, em termos reais. E a relação entre gasto com pessoal (inclui encargos) e PIB (dados do Tesouro Nacional) se dá como no gráfico:
Gráfico 1
A relação entre gasto com pessoal e PIB, no período apontado pelo relatório do Banco, tem média de 4,2% (inclui militares) e coeficiente de variação de 0,05. A relação é máxima em 2009 (4,6%) (a crise internacional do subprime, reduziu o denominador) e mínima em 2013 (3,8%).
É evidente que há falta de critério técnico ou ansiedade para provar o ponto contra os servidores. Frases como esta, sobre o crescimento dos salários, se tornam verdadeiros mantras para a opinião pública antagonista dos servidores, uma inconveniência técnica que decorre de se utilizar deflatores diferentes para numerador e denominador. No caso, o deflator do PIB é maior do que o IPCA, que ajusta os valores nominais dos gastos.[iv]
Em suma, se o PIB cresceu 17% em termos reais no período e a relação entre Gasto e PIB é virtualmente constante naqueles dez anos, o gasto com servidores não pode ter aumentado 48% também em termos reais.
Na recente apresentação da proposta de reforma administrativa, há a informação de que a despesa com pessoal civil ativo do Executivo Federal experimentou um aumento de 145% nos doze anos findos em 2019. Números significativos à primeira vista, porém não são nada relevantes se comparamos com o aumento nominal do PIB no mesmo período, de 166,7%. Como neste período não houve efeitos que reduzissem a participação média dos salários na renda nacional, pode-se sustentar que a massa de salários seguiu o mesmo ritmo do PIB. Não menos relevante, o aumento nominal do salário mínimo foi de 167,9%, em igual período.
II.2 Os Valores
Quadro 3
O quadro 3 trata de ajustar as despesas com servidores federais, mediante critérios do Manual de Demonstrativos Fiscais 9ª Edição, da STN. Não foram computadas despesas com exercícios anteriores, sentenças judiciais que não gerem efeitos permanentes, inativos com recursos vinculados e foi descontada a contribuição patronal e dos servidores ao CPSS do total gasto com Inativos e pensionistas. Permaneceram as despesas com juros.
A empresa pública é destacada por trabalhar no regime CLT. Os ajustes implicam a redução de despesas brutas de R$ 319,5 bilhões para R$ 183,3 bilhões (2019), diferença de R$ 136,2 bilhões. Se a empresa pública fosse retirada, aquele total cairia para R$ 172,2 bilhões. A redução, por critérios oficiais de ajuste, é de 43% em relação ao total apontado nas análises oficiais de despesa com pessoal.
De se notar que R$ 33 bilhões, no ano, são referentes às contribuições do servidor ao CPSS e à contribuição patronal (elemento de despesa que também é paga pelo empregador privado). Este montante é subtraído dos pagamentos de aposentadorias e pensões. Estes valores são originários das folhas de pagamento dos ativos e se voltam a financiar os inativos e pensionistas. O total recolhido em 2019 foi rateado na proporção de 72% para os aposentados. O restante, aos pensionistas. Este ajuste faz com que a despesa com inativos e pensionistas caia de R$ 87,5 bilhões (1,21% do PIB) para R$ 54,5 bilhões (0,72% do PIB) (sem militar). Este resultado corresponde ao verdadeiro ônus do setor público com os pagamentos relativos aos inativos do regime próprio, de fato marca o déficit (o conceito de déficit é comentado abaixo). Esta é a medida correta do ônus com inativos e pensionistas.
O gasto com o pessoal Militar, que não é servidor, mas é sempre embutido nas contas, representa R$ 74,8 bilhões.
Com isso, as despesas que não pertencem ao quadro de gastos com pessoal – militares e contribuições patronais – somam mais de R$ 107 bilhões que, comparado com o total oficial de R$ 319,5 bilhões, representam 33,6%. Não está claro se o Banco Mundial teve a acuidade em trabalhar o dado de forma correta, antes de concluir contra os servidores.
Não considerar os restos a pagar traz o conceito de regime de competência para a análise, mais conveniente para se comparar períodos sem as flutuações de ajustes de caixa. As sentenças judiciais sem impacto permanente não implicam despesas estruturais. Restaria a questão dos militares. Os adeptos da ideologia contra o servidor questionariam “quem vai pagar?”. Como sempre, a sociedade. Mas não será por isso que despesas indevidas devam ser incluídas em gasto de pessoal. Entende-se, militar parece servidor, mas não é.
Quadro 4
O quadro 4 descreve a participação dos gastos com pessoal em percentagem do PIB e da Receita Corrente Líquida – RCL. Sem militares, o gasto cai de 4,01% do PIB para 2,98%. Quando descontadas as contribuições, o pagamento total de pessoal (2019) cai para 2,53% do PIB (R$ 183,3 bilhões).
Os três principais ministérios (Educação, Saúde e Economia) representam 52% do total de gastos com pessoal ativo, sem militares (quadro 3). Para o programa que pretende reduzir remunerações e oferta de serviço público, a tarefa deverá incluir necessariamente estas três áreas. Reduzir a prestação de serviço público em Saúde e em Educação talvez não seja de fácil implementação.
Os poderes legislativo e judiciário, que tanto figuram na propaganda de ataque ao servidor, representam 0,48% do PIB (R$ 34,8 bilhões), em pessoal ativo. Qual tamanho de corte para se obter poupança significativa?
A Lei de Responsabilidade Fiscal estipula que o Governo Federal não pode gastar mais do que 50% da Receita Corrente Líquida. Sem incluir o pessoal militar, o gasto está abaixo da metade (23,9% da RCL). Ao se analisar o pessoal ativo, que de fato toca a máquina operacional de governo, gasta-se 14,2% da RCL.
Não é evidente que ameaças ao quadro fiscal surjam das despesas de pessoal, a provocar instabilidades. Alguns argumentam que os aposentados são (e serão) ônus pesado. A LDO de 2019, em seu Anexo V, apresenta as contas atuariais do RPPS. Em resumo, o déficit é máximo em 2027 (0,99% do PIB). Em 2060, chega a 0,3% e acaba em 2093. O déficit aumenta na década de 20 em decorrência do novo sistema de aposentadoria (lei 12 618/2012), em que parte dos servidores deixa de contribuir para o regime próprio, em favor do Funpresp. Experimenta-se a transição de um regime administrativo para o de capitalização, o que implica custos. Não foi por outra razão que, apesar de alardeada na reforma da previdência, em 2019, o Governo desistiu de implantar o regime de capitalização no Sistema Geral da Previdência.
O conceito de déficit previdenciário precisa ser explicitado. Não basta haver a circunstância em que os pagamentos superem as contribuições. Num regime de capitalização, para que haja déficit, o valor presente dos pagamentos, com probabilidade de vida implícito, deve superar o valor presente das contribuições. Num regime de repartição simples, é necessário haver um movimento demográfico que leve o volume de contribuições (número de contribuintes vezes o valor da contribuição) a ser menor do que o valor das obrigações. A história do regime próprio dos servidores explica grande parte do hiato de recursos que se observa.
Até a década de 1990, os servidores públicos civis da União contribuíam apenas para o benefício de pensão por morte por intermédio de alíquota de 6% sobre sua remuneração. A Constituição e o Regime Jurídico Único (Lei n° 8.112/1990, Art. 183) introduziram o conceito de Plano de Seguridade Social do servidor público. A contribuição previdenciária dos servidores públicos só se iniciou em 1993 (Emenda Constitucional nº 3). A partir de então, o regime próprio passou a ser financiado por contribuições da União e dos servidores. Com esta alteração, alguns defenderam que aquela contribuição passou a implicar a meta de equilíbrio no regime próprio. Mas não é isto, a Constituição simplesmente disse que o regime dos servidores passaria a ser financiado por ambas as partes, servidores e Governo. Nunca disse que deveria haver equilíbrio e nem poderia, uma vez que, em 1988, 600 mil celetistas foram transmutados ao Regime Jurídico Único, um contingente expressivo que constitui a perturbação demográfica que anula qualquer possibilidade de se pretender obter equilíbrio (déficit zero) no regime próprio dos servidores. Alegar este déficit para sustentar as medidas da reforma da previdência, bem como a atual reforma administrativa, é desinformação, no mínimo, de pessoas que pretendem retirar recursos destinados, por mérito constitucional, aos servidores.[v]
De toda forma, a situação da aposentadoria do servidor público federal está equacionada.[vi]
Onde estamos e onde se quer chegar?
A contribuição patronal ao CPSS é de 2,1% da RCL (R$ 19,1 bilhões) e é descontada da conta de pagamento de inativos e pensionistas porque tal contribuição tem a função de cobrir os pagamentos do regime próprio. Não retirar a contribuição ao CPSS (em conta gráfica), acaba-se computando duas vezes este pagamento, uma na conta dos ativos (entra como encargos) e outra como componente do pagamento do déficit deste regime.
Este conceito – de gasto de pessoal em relação à receita corrente líquida – pode ser traduzido para o setor privado como despesa de pessoal (e encargos) em relação ao valor adicionado bruto, que se encontra nas demonstrações contábeis. Levantamento feito no sítio da Comissão de Valores Mobiliários permite o quadro 5, abaixo, para o setor privado brasileiro.
Das empresas e seus resultados encontrados, foram desconsideradas aquelas de participação, produtoras de bens e instituições financeiras. Não foram incluídas as que apresentavam resultados negativos e aquelas em recuperação.
O espectro de valores de participação do custo de mão de obra no valor adicionado é amplo. O mínimo encontrado é 3% (consórcio que administra a estrada Presidente Dutra) e o máximo em 74% (Ferrovia Centro-Atlântica). Ambas no segmento logística e transporte.
O setor de saúde apresenta as relações de 31% e 47%, só um pouco menos elevado do que o observado no segmento treinamento e Educação, com 67,5% e 51,1%.
A média ponderada pelo valor adicionado, das empresas consideradas, é 18,6%, maior, portanto, do que a relação encontrada para os servidores ativos do setor público federal.
Evidentemente, não se consideram os gastos com inativos e pensionistas do regime próprio, para se comparar situações equivalentes, pois o setor privado não arca com o custeio do déficit do regime geral da previdência.
As contas do Governo Central mostram os gastos com pessoal ativo inferior ao que se observa no setor privado de serviços (o Governo é uma grande empresa prestadora de serviços e serviços são mão de obra intensiva), quando se compara com a receita. Nesse quadro, há que se indagar onde querem colocar o setor público federal? Qual a meta? Os servidores federais que custam à sociedade, ao todo, incluindo inativos e pensionistas, 2,53% do PIB, são considerados a origem de toda a pobreza nacional e de toda a desigualdade social existente no País (embora não fique claro o que venha a ser a igualdade almejada). Mais relevante, se considerarmos somente os ativos, este custo é de 1,78% (R$ 128 bilhões). A pretendida reforma tem o objetivo de baratear o custo de mão de obra. Nada com eficiência e produtividade. Estes termos (eficiência e produtividade) surgem no discurso descompromissado da propaganda reformista, sem que se ouse contestar, embora os reformistas não apontem qualquer indicador neste sentido.
Enfatizando, quanto se deseja cortar da folha de pessoal? Há uma meta? Há uma lógica?
Quadro 5
Conclusão:
Relatórios e estudos, como o mencionado do Banco Mundial (BM), trazem informações a partir de números obtidos por meio de metodologias que deveriam ser mais bem discutidas e divulgadas. O BM retirou os valores de contribuição dos servidores e do Governo ao CPSS do montante de despesa com inativos? Qual o tratamento dado aos militares? São servidores? Os funcionários das empresas públicas dependentes são celetistas e, portanto, não geram ônus ao regime próprio de previdência e, por hipótese, não têm estabilidade. Foram tratados como servidores? Por que?
Estes estudos são encomendados pelo Governo às instituições multilaterais em que o Brasil participa e os relatórios são feitos, geralmente, de acordo com a demanda do cliente. Portanto, deve-se ler com cuidado e prestar atenção à metodologia. Comparam, em âmbito internacional, relações de salários do setor público e setor privado, como se o grau de qualificação dos trabalhadores (produtividade) do setor privado, em todos os países, fosse homogêneo. No setor público federal brasileiro, mais de 80% dos servidores têm nível superior ou maior. Será assim em todos os comparadores?
Comparam o momento de duas carreiras, supostamente equivalentes, para concluir que há aviltante prêmio em favor dos salários dos servidores. O que não fazem é comparar o valor presente destas mesmas duas carreiras ao longo de uma projeção de 40 anos, pois, certamente, o valor presente na iniciativa privada (para profissionais qualificados) será superior.
Além de tais estudos que dão roupagem técnica à campanha ideológica contra os servidores, os gastos com servidores federais é uma constante desde 1997, sem tendência, ao redor de 3% do PIB (sem militares).
A despesa com servidores está em 2,53% do PIB e com os ativos 1,78%. Em termos de Receita Corrente Líquida o total das despesas está em 20,2% (o máximo, por lei é 50%) e com os ativos (pessoal que opera a máquina) 14,2%.
Os gastos com os aposentados e inativos do regime próprio aumentam até 2027 como reflexo da transição entre regimes de aposentadoria. Ainda assim, pretendem punir os inativos com encargos adicionais, como na reforma da previdência, sob o argumento da desigualdade. Argumentos que ignoram a lógica do processo.
Poucos países comparáveis apresentam estrutura administrativa com Governo Central. Com os dados do BM, 2019, o gráfico 2, abaixo, não mostra o Brasil deslocado em termos de gasto com pessoal, ajustando-se o gasto por tamanho de PIB per capita.
O Brasil figura com gasto de 4,26% do PIB (certamente, inclui militares). A Inglaterra com 5,95%, Chile 4,83%, Tailândia 4,89% e Colômbia 3,49% são países no entorno da realidade brasileira. Não há disparates. Certamente, há países com patamar de gastos menor, o que depende da distribuição de atribuições entre os níveis de governo, fato que qualifica a comparação internacional e não permite que se faça a tradução pura e simples da observação para a conclusão. Ou seja, comparações internacionais devem ser controladas para impactos de outras variáveis, como por exemplo atribuições do Governo Central. O gráfico 2 serve ao propósito de mostrar como a comparação internacional, sem outros controles, pode ser usada para emitir a mensagem que se deseja.
A reforma administrativa que se propõe aplicar no Brasil tem o objetivo de baratear a folha de pagamento. Na prática, tende a reduzir a atratividade da função pública para profissionais, o que irá refletir na qualidade do serviço público, no médio prazo.
Gráfico 2
[ii] A estrutura de ocupação não é muito diferente nos demais níveis de Governo, como citam Lopes, F e Guedes, E. : TRÊS DÉCADAS DE EVOLUÇÃO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO NO BRASIL (1986 – 2017): ATLAS DO ESTADO BRASILEIRO,diest/IPEA: “Relevante explorar e detalhar em análises futuras as transformações no perfil ocupacional dos servidores –- nos três níveis — para entender melhor como a racionalidade advinda da moldura institucional e da distribuição das competências federativas estabelecida pela Constituição de 1988 foi afetando o quantitativo de ocupações.
Nos municípios, por exemplo, 40% das ocupações correspondem aos profissionais do “núcleo-duro” dos serviços de educação ou saúde: professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. O cenário é similar nos governos estaduais e, considerando ainda os profissionais de segurança pública, o percentual das três áreas pode alcançar 60% do total de vínculos. No nível estadual, o quantitativo de vínculos de militares, ou seja, policiais e bombeiros, cresceu 145% e aumentou de 198 mil para 486 mil. Com essa expansão mais rápida que o crescimento da população, passou a haver um policial/bombeiro para cada 428 habitantes, em 2017. Em 1986, essa relação era de um policial/bombeiro para cada 677 habitantes.
[iii] Gestão de Pessoas e Folha de Pagamento no Setor Público Brasileiro. Banco Mundial. 2019.
[iv] Agradecemos a observação do economista Carlos Eduardo de Freitas em relação a este ponto.
[v] Lopes, F e Guedes, E. : TRÊS DÉCADAS DE EVOLUÇÃO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO NO BRASIL (1986 – 2017): ATLAS DO ESTADO BRASILEIRO. Diest/IPEA.
[vi] Agradecemos os comentários do economista Carlos Eduardo de Freitas.
Cláudio Jaloretto, possui graduação em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas de Bauru(1974), especialização em Curso de Especialização para Economistas pelo Fundação Getúlio Vargas – RJ(1980), especialização em Técnicas de Análisis y Programación Financieras pela Institute of International Monetary Fund(1996), especialização em Curso Avanzado de Progr. y Políticas Financieras pela Institute of International Monetary Fund(1999) e mestrado-profissionalizante em Economia do Setor Público pela Universidade de Brasília(2005). Servidor aposentado do Banco Central do Banco Central do Brasil. Tem experiência na área de Economia. Atuando principalmente nos seguintes temas: déficit público, Senhoriagem.
Felipe Ohana, é aposentado do IPEA, Assessor no Senado e Assessor Especial do Ministro Chefe da Casa Civill. Atualmente é Diretor do Departamento de Avaliação de Políticas Sociais no Ministério da Cidadania e Sócio da Consultoria Econômica OF Consultoria atuando em diversas consultorias econômicas.
“Os conteúdos dos textos publicados, artigos e notas, além dos comentários do público, são de responsabilidade exclusiva de seus autores e signatários, não envolvendo ou refletindo posicionamentos ou opiniões do CORECON-DF.”
Dados muito interessantes. A minha experiência pessoal no Poder Executivo (pastas ministeriais) me mostraram que há muitos servidores que não contribuem e até mesmo atrapalham. Uma Reforma Administrativa é mais do que necessária, e o teto de gastos é apenas um argumento, para diminuir a ineficiência.
O artigo descreve bem e critica de forma clara os dados do Banco Mundial sobre o serviço público no Brasil. Vale ressaltar a dificuldade de contratação e formação de pessoal qualificado. Além disso, as indefinições quanto a questões políticas e de caráter ideológico influenciam negativamente o debate e a construção de uma política de recursos humanos, ao longo desses anos, não só nas áreas de saúde e educação, como também segurança pública.