Cláudio Jaloretto
Corecon-DF nº 7364.
Em náutica, a âncora é um instrumento para prender o barco ao fundo do mar, em um porto ou em uma enseada, e impedir sua movimentação horizontal. Deve ser forte o suficiente para mantê-lo fundeado e fácil de ser içada assim que o navio precisar seguir seu curso. Uma boa âncora precisa ter também o formato adequado para prender o navio em qualquer tipo de solo, seja de pedras, de areia, ou pantanoso.
Mas uma âncora não é útil se o barco não estiver no porto ou ao abrigo de uma enseada e, dependendo da tempestade, ela pode ajudar o navio a ir a pique se não for recolhida a tempo.
Em economia, parodiando a náutica, também são criadas várias âncoras e que consistem em atrelar uma variável ao comportamento de outra e, assim, impedir que a primeira tenha comportamentos independentes da variável em que ela está fundeada.
A forma mais conhecida é a chamada âncora cambial, em que se atrela a variação da moeda local à variação de uma moeda forte, geralmente o dólar americano. Foi assim na Argentina no início da década de 90 do século passado, com resultados ótimos no início mas desastrosos ao longo do tempo. Foi assim, também, por ocasião do Plano Real, e que durou até o início de 1.999, quando foi abandonada e substituída pelo regime de metas de inflação.
A principal diferença entre esses dois exemplos é a rigidez da âncora que, no caso argentino, impediu o seu abandono quando as circunstâncias econômicas recomendavam a mudança.
Na política fiscal também existem vários tipos de âncora, tal como o limite da dívida em relação ao produto ou o limite de gastos com pessoal em relação às receitas correntes. Recentemente passou-se a utilizar, no Brasil, novo tipo de âncora fiscal, atrelada ao nível de preços. É o chamado teto de gastos primários, cuja variação depende da variação média dos preços do ano anterior.
Essa âncora tem a finalidade de buscar o equilíbrio fiscal, a médio prazo, pois garantiria a redução do déficit ou aumento do superávit primário via excesso de arrecadação por conta do crescimento real do PIB, ao mesmo tempo em que forçaria o aumento da produtividade do setor público que passaria a contar com menos recursos para atender ao crescimento da demanda por serviços públicos decorrente do aumento populacional.
No entanto, esse tipo de arranjo institucional tem alguns problemas, dentre os quais: i) a indexação dos gastos à variação dos preços torna o setor público aliado da inflação, pois esta poderia passar a ser percebida como alternativa para garantir um eventual aumento das despesas; ii) o estabelecimento de um teto global para todas as despesas, garantindo a alguns setores um patamar mínimo de gastos, pressionaria ainda mais os setores não contemplados podendo, com isso, desestimular a busca por maior produtividade desses setores, o que resultaria em menor qualidade dos serviços públicos prestados; iii) os setores privilegiados com o piso mínimo de gastos terão incentivo reduzido para buscar o aumento de produtividade; iv) desestimula a busca por arrecadação por parte dos entes descentralizados; e v) pode tornar rígido, para baixo, o patamar de gastos primários pois o teto pode passar a ser considerado, também, como piso pelos agentes públicos.
Ademais, o longo prazo de vigência, de vinte anos com revisão em dez, confere excessiva rigidez à âncora, dificultando eventual necessidade de adequação da política fiscal para atender a flutuações não previstas na atividade econômica. De fato, a recente pandemia pôs a prova a existência dessa âncora, ao requerer o aumento dos gastos federais, tanto em função do combate ao vírus quanto em função da retração da atividade econômica, além da forte redução da arrecadação tributária.
A resposta política foi rápida, e a âncora foi suspensa para permitir ao Governo Federal enfrentar a crise mas, assim que passar a epidemia, volta a ser lançada para manter os gastos do navio governo ancorados.
O que se discute agora é se faz sentido a retomada da âncora do teto de gastos assim que cessarem os efeitos da pandemia e que depende do tipo de recuperação que se fará presente, se em U, V ou suas derivações, L, etc.
O mar vai continuar revolto por um bom tempo; o porto ainda está cheio de entulhos do tsunami e o barco precisa zarpar para cumprir seu destino. Não é hora de âncoras.
Certamente o impacto da pandemia nas contas públicas foi e será significativo, com a dívida líquida assumindo um patamar bem superior ao existente antes da crise enquanto os agentes do mercado se agarram ao, aparentemente, único instrumento disponível para conduzir a política fiscal para um regime de equilíbrio e responsabilidade. Mas será o único? Não existe alternativa?
O abandono da âncora do teto de gastos primários, que já demonstrou seu poder limitado em conseguir manter a política fiscal em uma trajetória consistente e segura, requer a substituição por outro mecanismo que possa exercer o papel de ancorar as expectativas na solvência do governo.
Tomemos, como exemplo, o abandono da âncora cambial ao final do século passado e sua substituição pelo sistema de metas de inflação. Esse sistema permitiu ao Banco Central conduzir adequadamente a política monetária e manter relativamente estável o poder de compra da moeda, mesmo sem ter autonomia formal, e enfrentar algumas turbulências como mudanças de governo, “nova matriz macroeconômica” e impedimento da Presidente da República.
Porque não repetir o exemplo e substituir a âncora fiscal por um sistema de metas fiscais? Não das metas fiscais na forma como estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas um sistema de metas.
Um sistema de metas deve ser construído com o comprometimento de todos os Poderes envolvidos, conter metas claras e objetivas, ambiciosas mas factíveis e totalmente transparente e negociado; com apresentação periódica dos resultados, contendo justificativas claras e adequadas para eventuais desvios e medidas necessárias para a correção de curso. Assim podemos evoluir para um sistema mais moderno e abandonar as tentativas arcaicas de controle global de gastos e corte linear de despesas para atingir o equilíbrio fiscal.
CLÁUDIO JALORETTO, é Servidor Aposentado do Banco Central do Brasil, onde foi Chefe do Departamento de Processos Administrativos Sancionadores, Consultor do Diretor de Liquidações e Desestatização, Chefe do Departamento da Dívida Pública, e Consultor do Departamento Econômico. Foi membro do Conselho de Curadores do FGTS e conselheiro alterno do Conselho de Orientação do Fundo Nacional de Desenvolvimento – FND. Participou de negociações com o FMI, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da elaboração da Lei do Processo Administrativo Sancionador do Banco Central e da CVM (Lei nº 13.506/2017). É Comendador da Ordem do Mérito do Trabalho, Economista pelo Instituto Toledo de Ensino em Bauru e Mestre em Economia pela UnB.
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Estabelecer uma política pública no Brasil sempre foi muito dificil. O Brasil é um país difícil de se administrar do ponto de vista das contas públicas, temos necessidades demais e geramos recursos de menos. É difícil encontrar um aliado que no ajude na medidas de nossas necessidades.
Concordo que as âncoras sempre foram uma característica da formação de uma política econômica para o gerenciamento de crises . No entanto, as âncoras tem ficado leves para os desafios de maritimidade que precisam suportar. Além disso, âncoras não enfrentam um problema – elas são uma pausa.
A economia brasileira parece esperar o momento para se desenvolver, não apenas por não ter uma capacidade produtiva nos moldes de suas necessidades, mas também por não produzir resultados adequados e que façam a diferença. As soluções para o gerenciamento macroeconômico, ao que parecem podem tornar-se empecilho ao desenvolvimento real. Ou ao invés da economia brasileira torna-se uma economia produtiva e de agregação de valor, ela está se tornando financeira demais.
Concordo, o teto é operacional. Serve para iluminar despesas que se deseja cortar, pelo critério de classe de despesa. No caso atual, a meta é o gasto com servidor.
Sem meta de primário, o teto não indica o rumo da política fiscal. E a meta fiscal é o resultado primário.