José Luis Oreiro
Autor convidado pelo Corecon-DF.
A pandemia do coronavírus tem me permitido colocar em dia uma série de leituras que estavam paradas por conta dos deslocamentos que eu tinha que fazer pelas mais diversas razões de ordem profissional. Nos últimos dias tenho me dedicado a leitura do livro “O Preço da Destruição: construção e ruína da Economia Alemã” de autoria de Adam Tooze e publicado pela Record em 2013.
O livro me permitiu entender a obsessão de Hitler pelo Lebensraun ou “espaço vital” na tradução para o português. É sabido que um dos elementos centrais da ideologia nazista era a conquista de espaço territorial no leste da Europa, basicamente na Polônia e na Rússia. Eu sempre havia entendido essa busca pelo “espaço vital” como uma forma da Alemanha, que havia entrado tardiamente na conquista colonial no século XIX e perdido as poucas colônias que tinha fora da Europa no final da I Guerra Mundial, conquistar mercados para a sua indústria, dada impossibilidade militar de ocupar mercados já ocupados pelo Império Britânico e pelos Estados Unidos. No entanto, essa explicação sempre esbarrava numa aparente irracionalidade: se o objetivo da Alemanha era conquistar mercados então porque razão a política nazista para as áreas ocupadas a leste do rio Oder era de remoção e extermínio das populações locais?
A conquista de espaço físico só implica em conquista de mercados se as populações locais forem mantidas vivas e com um nível razoável de poder de compra, do contrário não haverá mercado consumidor para os produtos alemães. No entanto, como já havia lido em outro livro (“O Terceiro Reich em Guerra” de Richard Evans) nos territórios ocupados na Polônia e na URSS as forças alemãs executaram assassinatos em massa não apenas de Judeus mas também, embora em menor grau, de poloneses, russos e ucranianos. Além disso, fazia parte dos planos de Hitler para essas áreas a “remoção” da população local e sua substituição por colonos alemães que deveriam formar colônias agrícolas. Em suma, a conquista do “espaço vital” não tinha por objetivo conquistar mercados para a indústria alemã, mas dar mais terras aos camponeses alemães.
Essa motivação sempre me pareceu anacrônica para um país industrialmente moderno como era o caso da Alemanha. Afinal de contas porque razão um país que possuía uma grande indústria moderna iria se preocupar em conquistar terras para fazer assentamentos agrícolas?
O livro de Tooze nos fornece uma explicação interessante. Em primeiro lugar, a economia alemã, na década de 1930, não era tão desenvolvida como somos levados a crer em função dos sucessos militares de Hitler entre 1939 e 1941. De fato, a renda per-capita da Alemanha era cerca de 50% menor do que a dos Estados Unidos e 33% menor do que a do Reino Unido. Em termos de tamanho absoluto de PIB alemão era ligeiramente inferior ao britânico e 73% menor do que o PIB dos Estados Unidos. Além disso, enquanto pouco mais de 5% da força de trabalho do Reino Unido estava empregada na agricultura, na Alemanha esse percentual se encontrava entre 25 a 30% da força de trabalho. Em suma, a Alemanha ainda possuía uma parte expressiva da sua força de trabalho empregada em atividades agrícolas.
A população alemã somava aproximadamente 66 milhões de pessoas no início da década de 1930, quase 20 milhões a mais do que a população total da França, distribuída num território ligeiramente inferior ao ocupado pela população francesa. A combinação de uma população grande para os padrões mundiais da época com um território modesto e com uma elevação proporção da força de trabalho empregada na agricultura fazia com que a disponibilidade de terras aráveis por agricultor na Alemanha fosse 25% menor que na França, 45 % menor que na Grã-Bretanha e 83% menor do que nos Estados Unidos (Tooze, 2013, p.214). A menor disponibilidade de terras por agricultor implicava, devido aos rendimentos decrescentes na agricultura, numa renda média no campo consideravelmente menor do que nos demais países avançados; o que em conjunto com a elevada proporção da força de trabalho empregada na agricultura fazia com que a produtividade média da economia alemã fosse significativamente menor do que a observada nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França.
Para que a Alemanha pudesse fazer o catching-up com respeito aos demais países avançados seria necessário continuar o processo de mudança estrutural por intermédio da industrialização, o qual havia começado em meados do século XIX e se acentuado entre 1890 e 1914. Isso implicava em realocar mão-de-obra da agricultura para a indústria, o que exigiria, por sua vez, um aumento significativo da produção industrial e da participação da indústria de transformação no PIB alemão. Mas para que a produção industrial possa aumentar é necessário um aumento da demanda por produtos manufaturados. Aqui a Alemanha se encontrava com duas fortes restrições. A primeira era o reduzido tamanho do seu mercado interno. Com efeito, a pobreza relativa dos trabalhadores alemães limitava a capacidade dos mesmos de consumir os bens de consumo de massa que eram acessíveis aos trabalhadores nos Estados Unidos e do Reino Unido. A título de exemplo, os Estados Unidos com uma população 50% maior do que a da Alemanha possuía 50 vezes mais automóveis. Dessa forma, uma expansão da produção industrial para atender ao “mercado interno”, ou seja, um desarollo hacia dentro não estava disponível para a economia alemã no início da década de 1930. A saída seria, portanto, conquistar mercados externos, ou seja, aumentar as exportações de produtos manufaturados.
Aqui a Alemanha se defrontava com seu segundo obstáculo, qual seja, a existência de uma taxa de câmbio sobrevalorizada devido a insistência do Presidente do Reichsbank (o Banco Central da Alemanha), Hjalmar Schacht (sim, esse mesmo que foi citado como exemplo a ser seguido pelo Ministro da Economia Paulo Guedes) em manter o marco alemão atrelado ao padrão-ouro após o abandono do mesmo pelo Reino Unido em 1931 e pelos Estados Unidos em 1933. O abandono do padrão-ouro implicou uma forte desvalorização (próxima a 30%) da Libra Esterlina e do Dólar americano com respeito ao marco alemão. Dessa forma, as exportações industriais alemãs perderam competitividade frente aos produtos exportados pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. O resultado foi uma contração das exportações alemãs entre 1933 e 1934, levando a uma progressiva redução das reservas internacionais da Alemanha, as quais chegaram ao nível de 100 milhões de Reichsmarks no primeiro semestre de 1934, o suficiente apenas para pagar uma semana de importações. Em suma, o início da administração nazista foi caracterizada por uma crise do balanço de pagamentos.
A solução trivial para o problema de escassez de divisas da Alemanha seria uma desvalorização da taxa de câmbio com o consequente abandono do padrão-ouro. Mas Schacht, apoiado por Hitler, preferiu manter a moeda alemã atrelada ao ouro Para mitigar de forma imediata o problema do balanço de pagamentos, a Alemanha suspendeu de forma parcial o pagamento da sua dívida externa com os Estados Unidos e o Reino Unido, ou seja, declarou default sobre suas obrigações externas. Além disso, para aumentar a competividade das exportações alemãs, o Reichsbank concederia um subsídio implícito para os exportadores por intermédio de um esquema engenhoso: os exportadores alemães usariam os dólares ou libras esterlinas oriundos de suas exportações para comprar os títulos da dívida externa alemã em Nova Iorque, cujo valor de mercado havia sido reduzido pelo default, e vende-los ao Reichsbank a um preço praticamente igual ao seu valor de face. Esse esquema implicava uma desvalorização implícita da taxa de câmbio alemã para a exportação de produtos manufaturados, ao mesmo tempo que manteria uma taxa de câmbio valorizada para as importações de matérias-primas e alimentos que a Alemanha tanto necessitava.
Por mais engenhoso que fosse o esquema de Schacht ele não poderia funcionar indefinidamente pois (i) os preços de mercado da dívida pública alemã começariam a aumentar a medida que os retentores desses títulos percebessem a existência de uma demanda firme pelos mesmos por parte dos exportadores alemães e, em ultima instancia, pelo Reichsbank; (ii) os Estados Unidos e o Reino Unido não iriam tolerar, por muito tempo, um sistema de subsídio as exportações alemãs. Dessa forma, a manutenção do padrão-ouro exigiria a adoção de um sistema rígido de controle de importações.
Como mencionado anteriormente, a produtividade do trabalho na agricultura alemã era baixa de forma que a importação de alimentos (principalmente forragem para o imenso gado leiteiro alemão) era fundamental para a economia alemã. Além disso, a Alemanha era um país bastante pobre em recursos naturais. Excetuando as minas de carvão do vale do Ruhr, a Alemanha não dispunha de reservas significativas de minério de ferro (importado da Suécia) e de Petróleo (importado da Romênia e da Hungria). O rearmamento da Alemanha após 1934 exigia a importação de grandes quantidades de minério de ferro e de petróleo, de forma que a importação de bens de consumo deveria ser significativamente reduzida para não estrangular o balanço de pagamentos alemão, o que implicava em manter baixo o padrão de vida dos trabalhadores alemães. Pra diminuir a dependência de Petróleo importado a Alemanha também desenvolveu um programa de produção de combustível sintético a partir do carvão, com resultados apenas razoáveis do ponto de vista de eficiência energética.
Esse quadro de estrangulamento externo confirmou a visão de Hitler de que a Alemanha possuía um problema estrutural de balanço de pagamentos que só poderia ser resolvido por intermédio da conquista de novos territórios, os quais permitiriam que (i) aumentasse a produção de gêneros agrícolas e, consequentemente, a renda média dos camponeses alemães e (ii) assegurasse uma fonte estável de fornecimento de matérias-primas, principalmente petróleo, para a economia alemã. Dessa forma seria possível aumentar o padrão de vida dos trabalhadores alemães, equiparando-os com o nível de vida desfrutado nos Estados Unidos.
Em resumo, a política do “espaço vital” obedecia a uma lógica econômica, ainda que perversa, e decorreu fundamentalmente da combinação entre a transformação estrutural incompleta da economia alemã, com a permanência de uma elevada proporção da força de trabalho empregada na agricultura, e o estrangulamento externo da Alemanha devido a obsessão com o “marco forte” e, consequentemente, com a manutenção do padrão-ouro.
Sendo assim, podemos dizer que o expansionismo territorial da Alemanha nazista e os genocídios que o acompanharam foram o resultado histórico mais ou menos direto da adesão à ortodoxia econômica da época. Se a Alemanha nazista tivesse seguido as ideias de Keynes, que sempre se mostrou totalmente contrário ao padrão-ouro, a história da Alemanha e do mundo poderia ter sido bem diferente.
Achei incrível! Esse material explicando o regime Nacional-Socialista na visão econômica.
Sempre tive curiosidade de saber como um regime tão atroz conseguio superar uma crise e se reamar até os dentes .
Apenas deixo uma pergunta o Regime Nazista pode ser considerado um capitalismo de estado? Como na China com o seu Socialismo de mercado, so que com objetivos e razões diferentes?
Muito obrigado pelo excelente material!