Júlio Miragaya
Corecon-DF nº 4972
Indústria 0.0
Em tempos de Quarta Revolução Industrial, com uma indústria crescentemente automatizada, nível 4.0, não seria exagero classificar o anêmico e atrasado setor industrial de Brasília como indústria 0.0. Enquanto a indústria de transformação no Brasil, mesmo em notória queda desde 2011, ainda responde por 15% do PIB brasileiro, no Distrito Federal ela responde por pífios 0,9% do PIB local, no mesmo patamar de Roraima e Amapá. O valor da produção da indústria de transformação brasileira em 2019 se aproximou de R$ 1 trilhão (precisamente, R$ 920 bilhões), mas a contribuição brasiliense para este resultado foi de inexpressivos R$ 2,24 bilhões, 0,24% ou pouco mais de 2 milésimos. Também o “zero ponto alguma coisa” foi notado na participação da indústria brasiliense no total das exportações industriais brasileiras: US$ 100 milhões num total de US$ 100 bilhões, ou 0,1%.
Enquanto no país a indústria de transformação responde por 68% do PIB industrial, superando amplamente a construção civil (18%) e os serviços industriais de utilidade pública (SIUP), que engloba energia, gás, água etc (14%), no DF ela responde por apenas 23,5% do setor industrial local, superado pela construção civil (52%) e os SIUP (24,5%). Além de inexpressiva, a indústria de transformação brasiliense é amplamente composta por empresas de pequeno porte e atuando nos setores menos dinâmicos: alimentos e bebidas, minerais não metálicos (cimento) e gráfica, mas em nenhum respondendo por mais de 0,5% da produção nacional. Já nos setores mais dinâmicos sua participação é para lá de pífia: eletrônica e informática (0,08%), material elétrico (0,03%), química (0,02%), siderurgia e metalurgia (0,02%), material plástico (0,01%) e máquinas e equipamentos, petroquímica e veículos automotores (0,0%).
Qual a razão para tamanho nanismo? Simplesmente a inoperância e omissão de seus sucessivos governantes, que há décadas alimentam alguns mitos. O primeiro: “Brasília foi concebida para ter exclusivamente funções político-administrativas e que o exercício dessas funções e a atividade industrial são incompatíveis”. Argumento ridículo, invalidado pelos robustos parques industriais encontrados em inúmeras capitais do planeta como Buenos Aires, Cidade do México, Santiago, Paris, Berlim, Madri, Moscou, Tóquio, Pequim e Seul, para ficar apenas em alguns exemplos. Segundo: “A indústria não tem mais a mesma importância do passado”. Desconhecem que a indústria ainda tem um grande peso nas economias de países desenvolvidos, e mais, são indutoras do desenvolvimento tecnológico e do setor terciário. Ignoram que um parque industrial robusto garante a vitalidade do setor de serviços, visto que cada emprego gerado na indústria gera, em média, de 2 a 5 empregos no setor terciário.
Terceiro mito: “O Distrito Federal não tem espaço para a instalação de plantas industriais” A esses desinformados, cabe lembrá-los que Cingapura, com área territorial 8 vezes menor que a do DF e o dobro da população, ostenta um PIB industrial nada menos que 70 vezes maior que o nosso. Há um quarto mito, de que a indústria é uma atividade altamente poluidora. Sim, foi e ainda é em muitos casos, mas não faltam instrumentos tecnológicos e legislativos para garantir que a atração de investimentos industriais não resulte em degradação do meio ambiente.
A anemia industrial é a principal responsável pela nossa estrutura econômica pouco diversificada, pela elevadíssima taxa de desemprego e subemprego (a área metropolitana possui hoje quase meio milhão de desempregados e outro tanto de subempregados) e pela indecente desigualdade social e espacial da renda. A omissão dos governantes reflete, além de ignorância, uma pressão egoísta da classe média local, que pensa estar preservando sua cidade, não obstante estar condenando milhares de brasilienses ao desemprego e subemprego. Até quando os governantes locais vão continuar de costas para as necessidades do povo e acreditando em mitos?
“Entorno Metropolitano” (parte 1): 62º aniversário!
Brasília comemorou seu 62º aniversário, e é inquestionável que ela representa uma história de sucesso, tendo sido a principal promotora do processo de interiorização da ocupação do território brasileiro, notadamente de sua fronteira oeste. Mas também coleciona enormes contradições, tendo logrado nessas seis décadas constituir-se numa das metrópoles brasileiras mais desiguais, tanto na dimensão social quanto espacial (o rendimento médio na Região Administrativa mais rica, o Lago Sul, é quase 20 vezes maior que na mais pobre, a Estrutural).
Na raiz desses problemas estão sua estrutura econômica pouco diversificada, excessivamente dependente do setor público; o ainda significativo fluxo migratório, que pressiona fortemente a demanda por infraestrutura urbana, serviços públicos e emprego e a elevadíssima concentração dos postos de trabalho no Plano Piloto (40% do total), tendo ele apenas 7% da população do DF. Ademais, a incipiente atividade industrial e a prevalência, no setor privado, de serviços de baixa qualificação, resultam numa baixa receita orçamentária própria, mascarada por robustas transferências da União, notadamente o Fundo Constitucional do DF. Mas há um outro aspecto ainda mais grave.
A partir da fundação de Brasília ocorreu na sua periferia uma verdadeira explosão populacional, formando o que se convencionou chamar de “Entorno de Brasília”. O Censo Demográfico de 2022 deverá confirmar Brasília como a 4ª metrópole mais populosa do Brasil, superando, as RMs de Porto Alegre e de Recife e ficando atrás apenas das RMs de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A previsão é que sejam apurados entre 4,45 milhões de habitantes na Área Metropolitana de Brasília (3,15 milhões no DF e 1,3 milhão na periferia metropolitana).
É importante distinguir o “Entorno Metropolitano” da Região Integrada de Desenvolvimento do DF e Entorno (RIDE). Criada pela LC nº 94/1998 (composta pelo DF, 19 municípios goianos e 2 mineiros) e ampliada pela LC nº 163/2018, compreendendo hoje 34 municípios (Brasília, 29 municípios goianos e 4 mineiros), a RIDE foi desenhada sob critérios políticos e resultou que a maior parte de seus municípios não possui ligações funcionais com Brasília. Já a Área Metropolitana de Brasília (“Entorno Metropolitano”) foi definida a partir dos vínculos funcionais desses municípios com Brasília. Segundo a Nota Técnica nº 01/2014 da Codeplan, ela é formada pelo DF e por 12 municípios goianos a ele adjacentes ou próximos, que com ele possuem fortes fluxos socioeconômicos e formam um único mercado de trabalho e de consumo: Águas Lindas de Goiás, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás, Novo Gama, Cidade Ocidental, Luziânia, Planaltina, Formosa, Padre Bernardo, Alexânia, Cocalzinho de Goiás e Cristalina.
Não fosse a criação de Brasília, os municípios que hoje formam o “Entorno Metropolitano” provavelmente continuariam sendo eminentemente rurais e escassamente habitados. Em 1960, a população total dos 5 municípios adjacentes existentes à época (Luziânia, Formosa e Planaltina, que deram origem ao DF, mais Alexânia e Cristalina) era de parcos 73,7 mil habitantes (sendo apenas 20,9 mil na área urbana). No ritmo que vinham crescendo (e em que cresceram outros municípios do nordeste goiano), teriam hoje cerca de 150 mil habitantes, e não 1,3 milhão. Ou seja, o “Entorno de Brasília” nasceu com Brasília, e, dessa forma, também comemora seu 62º aniversário. Nos três próximos artigos continuaremos discorrendo sobre nossa periferia metropolitana.
“Entorno Metropolitano” (parte 2): fosso profundo!
Vimos no artigo anterior que o “Entorno Metropolitano” é resultado da explosão populacional que ocorreu em Brasília após sua fundação. Se as chamadas “cidades satélites” surgiram quando o povo mais pobre não “cabia” no Plano Piloto e suas adjacências (Lagos Norte e Sul, etc), o “Entorno Metropolitano” surgiu quando este povo sequer “cabia” nas cidades satélites. E de parcos 70 mil moradores em 1960, alcança hoje cerca de 1,3 milhão. É do conhecimento geral que há um enorme abismo econômico e social entre o DF e o “Entorno Metropolitano”, mas o que talvez poucos saibam é que é o mais profundo entre núcleo e periferia considerando as 15 maiores regiões metropolitanas do país. Se o “Entorno Metropolitano” abarca 30% da população metropolitana, participa com míseros 6,5% de seu PIB e com pífios 6% da sua receita orçamentária.
O PIB do DF em 2019 (último dado disponível) foi de R$ 273,61 bilhões, 14 vezes maior que a soma do PIB dos 12 municípios metropolitanos (R$ 19,35 bilhões). Dessa forma, enquanto o PIB per capita do “Entorno Metropolitano” foi de apenas R$ 15.490,00, o do DF foi de R$ 90.743,00, 485% maior. Disparidade ainda mais acentuada ocorre com a receita orçamentária. Para 2022, o orçamento do DF é estimado em R$ 48,54 bilhões (R$ 16,28 bilhões só do FCDF). Já a estimativa orçamentária para os 12 municípios da periferia metropolitana é de parcos R$ 3,25 bilhões, quinze vezes menor. Dividindo-se o orçamento total pela população a ser atendida, observa-se que, no DF, o orçamento per capita resulta em quase R$ 16.000,00, enquanto a média nos municípios periféricos é de somente R$ 2.500,00 per capita, mais de seis vezes menor.
No âmbito da infraestrutura urbana, as diferenças são ainda maiores. Segundo as pesquisas da Codeplan (PDAD e PMAD), enquanto no DF cerca de 90% dos domicílios são ligados à rede geral de esgoto, na periferia metropolitana a rede contempla apenas 1/3 dos domicílios. Enquanto no DF mais de 90% dos domicílios estão em ruas com coleta de águas pluviais, nos seus municípios periféricos o percentual é de apenas 12%. Perto de metade dos domicílios na periferia metropolitana tem problemas com esgoto a céu aberto, entulho, erosão e área em declive. Isto significa baixa qualidade ambiental e de vida.
Enquanto no DF o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o maior do país, nos 12 municípios metropolitanos é sofrível. Cerca de quase 30% dos chefes de domicílio do DF tem ensino superior completo (chega a 86% no Lago Sul), mas nos municípios periféricos não passa de 7%. E se o Distrito Federal possui atualmente uma das maiores taxas de desemprego do país, superior a 18% (considerando o desalento e a “inatividade involuntária”), na sua periferia metropolitana a taxa beira os 30%. As disparidades são várias e acentuadas, semelhantes às que se observam na fronteira entre Israel e Gaza ou entre a Califórnia e o norte mexicano.
“Entorno Metropolitano” (parte 3): sem pai nem mãe!
Há anos se observa que tanto o GDF quanto o Governo de Goiás e o próprio Governo Federal “tiram o corpo fora” quando se trata de assumir responsabilidades quanto aos investimentos necessários no “Entorno Metropolitano”, quando na verdade tais responsabilidades deveriam ser compartilhadas. Tornou-se comum dizer que a solução dos problemas dos municípios metropolitanos é responsabilidade do governo de Goiás, pois eles fazem parte do território goiano, mas trata-se de uma meia verdade. Se o Distrito Federal alega, com razão, que a área fica fora de sua jurisdição, também com alguma razão, Goiás argumenta que, se não fosse a criação de Brasília, a área que hoje forma o “Entorno Metropolitano” provavelmente continuaria sendo eminentemente rural e escassamente habitada.
De fato, em 1960, a população total dos 5 municípios existentes à época (Luziânia, Formosa e Planaltina, que deram origem ao DF, mais Alexânia e Cristalina) era de apenas 73,7 mil habitantes (sendo 20,9 mil na área urbana), e, no ritmo que vinham crescendo (e em que cresceram outros municípios do nordeste goiano), teriam hoje cerca de 150 mil habitantes, e não 1,3 milhão. Isto serve para demonstrar que todos têm suas alegações, mas nenhum tem razão ao abdicar de enfrentar o problema, inclusive o Governo Federal, que alega ter constituído a RIDE, que não serve para coisa nenhuma. Deve-se aqui destacar que este elevado contingente é resultante do processo de “expulsão” de grande parte da população de baixa renda do DF para a periferia em virtude, especialmente, do elevado custo da terra e de moradia na Capital Federal.
Portanto, os problemas da periferia metropolitana de Brasília são também problemas de Brasília. Temos em nossa Área Metropolitana as maiores disparidades entre núcleo e periferia metropolitana entre as 15 maiores metrópoles do país. Tal situação é insustentável. Esses municípios não podem ficar condenados a serem eternamente cidades-dormitório do DF. Tem que ter condições de se desenvolverem e, para tanto, precisam de recursos financeiros que permitam substantivos investimentos em infraestrutura urbana: água tratada, esgotamento sanitário, captação de águas pluviais e equipamentos para propiciar melhores condições educacionais e de saúde pública.
“Entorno Metropolitano” (parte 4): 10% do FCDF para o Entorno!
Nos três últimos artigos abordamos a grave situação da periferia metropolitana de Brasília. Verificamos que ela começou a se constituir concomitantemente à fundação de Brasília, que um enorme fosso econômico e social se constituiu entre núcleo e periferia e que tanto o Governo de Goiás, quanto o GDF e o Governo Federal têm o mesmo discurso: cuide que o filho é teu! Neste artigo, trataremos de possíveis saídas para os gravíssimos problemas que assolam esta populosa e empobrecida região. Faltam alternativas? Certamente que não, mas sobra desprezo dos sucessivos governantes instalados nos palácios das Esmeraldas, do Buriti e do Planalto, assim como também dos deputados da Assembleia Legislativa goiana, da Câmara Legislativa do DF e do Congresso Nacional.
Três ações vêm há algum tempo sendo colocadas à mesa, sem a devida atenção. A primeira seria a institucionalização da área metropolitana de Brasília, que demandaria a aprovação das casas legislativas de Goiás e DF, que se notabilizam pela descarada omissão. Outra seria a formulação de uma estratégia de desenvolvimento para o conjunto da área metropolitana, que contemplasse ações voltadas para o fomento de atividades econômicas que mitigassem a forte dependência da economia local do setor público. Claro que tal planejamento implicaria na realização de investimentos substantivos para dotar a região da infraestrutura necessária para atrair tais investimentos.
Por fim, pouco se pode avançar se não houver uma alavancagem nos orçamentos dos municípios da periferia metropolitana. Vimos num artigo anterior que há uma enorme disparidade entre os orçamentos do GDF e dessas prefeituras: “Para 2022, o orçamento do DF é estimado em R$ 48,54 bilhões (R$ 16,28 bilhões só do Fundo Constitucional do Distrito Federal-FCDF). Já a estimativa orçamentária para os 12 municípios da periferia metropolitana é de parcos R$ 3,25 bilhões, quinze vezes menor. Dividindo-se o orçamento total pela população a ser atendida, observa-se que, no DF, o orçamento per capita resulta em quase R$ 16.000,00, enquanto a média nos municípios periféricos é de somente R$ 2.500,00 per capita, mais de seis vezes menor”.
O fato é que o DF recebe R$ 16,28 bilhões do FCDF para cobrir gastos com saúde, educação e segurança públicas, mas as maiores carências nessas áreas estão nos municípios metropolitanos, que, sem alternativa, sobrecarregam o equipamento público de Brasília. De acordo com dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD/DF) e da Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios (PMAD), ambas realizadas pela Codeplan, enquanto no DF cerca de 65% dos jovens estudam em escolas públicas, na periferia metropolitana esse percentual é superior a 80%. Enquanto no DF cerca de 70% da população utiliza a rede pública de saúde, na periferia metropolitana esse percentual é de 94%. E, por fim, embora a questão da segurança pública seja um grave problema no DF, está muito distante da dramática situação que ocorre em sua periferia metropolitana.
Pelo fato do “Entorno Metropolitano” ser uma “criação de Brasília” e por apresentar carências e demandas por gastos públicos muito superiores, porque não direcionar um percentual do FCDF para os municípios metropolitanos? Por exemplo, se fossem destinados 10% dos recursos do FCDF aos municípios da Periferia Metropolitana de Brasília, o R$ 1,63 bilhão/ano significaria uma perda de apenas 3,4% para o cofre do GDF, mas representaria um aumento de 50% na receita orçamentária de cada um dos 12 municípios metropolitanos. E, por certo, tal medida não significaria isentar o Governo de Goiás e da União de incrementarem seus investimentos na região, historicamente neglicenciada por ambos.
Júlio Miragaya é doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia.
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