JOSÉ LUIS OREIRO
Autor convidado pelo Corecon-DF.
Texto originalmente publicado em: https://jlcoreiro.wordpress.com/2021/02/13/elevar-a-taxa-selic-para-estimular-a-recuperacao-da-economia-brasileira-a-cloroquina-do-terraplanismo-economico-brasileiro/
Um ponto que tenho insistentemente repetido em minhas intervenções nas mídias sociais e na imprensa é que o debate sobre política econômica no Brasil se passa como se nosso país habitasse um universo paralelo no qual as leis econômicas funcionam ao inverso do que ocorre no universo das demais economias do planeta. Creio ter sido eu o criador da expressão “terraplanismo econômico” para designar o conjunto de FEBEAPA que se divulga na grande mídia a partir de entrevistas com economistas ligados direta ou indiretamente ao sistema financeiro. Vários desses “economistas” (alguns sequer possuem graduação em ciências econômicas, o que, de acordo com a legislação vigente no Brasil, faz com que não possam ser chamados de economistas) afirmaram a existência de coisas exóticas como “contração fiscal expansionista” (quando uma contração do investimento público geraria uma expansão do nível de atividade econômica, implicando assim na existência de um multiplicador negativo para os gastos autônomos, algo que possui ZERO de evidência empírica), “indústria não é importante para o desenvolvimento econômico”; “O Brasil precisa se especializar na produção de bens primários” e outras bobagens assemelhadas.
Mas a criatividade dos terraplanistas não tem limite. Em entrevista concedida para a Agência O Globo (Ex-secretária do Tesouro defende subir juros para ajudar a economia. Entenda por quê – Época Negócios | Economia (globo.com), a mestre em economia do setor público Ana Paula Vescovi, atualmente economista-chefe do Santander, afirmou que o Banco Central do Brasil errou em reduzir os juros para o patamar de 2% a.a, pois um patamar tão (sic) baixo de juros (quando o juro nominal básico nos países da área do Euro está negativo) teria trazido volatilidade da taxa de câmbio e produzido um aumento da inclinação da curva de juros; ou seja, a redução da taxa de juros de curto-prazo (a taxa selic) teria resultado numa elevação da taxa de juros de longo-prazo e, dessa forma, produzido uma CONTRAÇÃO MONETÁRIA, ao invés de uma expansão. Nesse contexto, a economista-chefe do Banco Santander sugere que o BCB inicie um ciclo de elevação da taxa de juros JÁ NO PRIMEIRO SEMESTRE, para levar a selic ao patamar de 4% a.a no final de 2021 e 6% a.a no final de 2022.
O fato de uma economista-chefe de uma das maiores instituições financeiras do país defender publicamente uma mudança na política monetária que irá claramente beneficiar a instituição na qual ela trabalha; deveria ser motivo suficiente para nenhuma pessoa com mais de dois neurônios levar a sério este tipo de posicionamento; haja visto que, no caso em questão, ela tem poucos graus de liberdade – para dizer o mínimo – para defender posições que contrariem os interesses dos seus empregadores. No entanto, essa entrevista forneceu uma excelente oportunidade para que eu possa explicar para o publico como se dá a relação entre a fixação da taxa de juros de curto-prazo e a inclinação da curva de juros, tema que já tratei anteriormente neste espaço (Ver juros de longo prazo | Resultados da pesquisa | José Luis Oreiro (wordpress.com)
Antes de nos debruçarmos sobre essa questão, cabem alguns esclarecimentos preliminares. Em primeiro lugar, não existe nenhuma evidência empírica disponível que aponte para um efeito expansionista de uma elevação da taxa de juros de curto-prazo sobre nível de atividade econômica, quando a economia opera com um elevado grau de ociosidade dos fatores de produção. Quem afirma esse tipo de coisa está se comportando tal qual aqueles que prescrevem cloroquina para o (sic) tratamento (precoce ou não) da covid-19. Não só o remédio não ajuda no tratamento da doença, como ainda seus efeitos colaterais podem agravar o quadro clínico do paciente, podendo leva-lo ao óbito. Em segundo lugar, nenhum Banco Central do mundo civilizado está discutindo em retirar os estímulos monetários dados em 2020 para evitar uma contração ainda maior do que a observada no nível de atividade econômica. Se o BCB elevar a taxa selic em 2021, então confirmará minha “teoria” de que uma falha no espaço-tempo ocorreu em 2016, a qual transportou o país para um universo paralelo ou para uma “realidade alternativa” na qual as leis econômicas funcionam ao contrário. Em terceiro lugar, existem vários fatores, muitos dos quais extra econômicos, mas idiossincráticos a economia brasileira, que levaram a um aumento da percepção de incerteza por parte dos agentes econômicos e, dessa forma, a um aumento da sua preferência pela liquidez com impacto negativo sobre a taxa de câmbio e sobre o prêmio de liquidez dos títulos longos sobre os títulos curtos. Vou citar apenas dois. Em primeiro lugar, o Brasil é o único país emergente governado por uma pessoa que não só é um negacionista da covid-19; mas que assume posicionamentos públicos que, no mínimo, dificultam o efetivo combate a pandemia. Isso por si só já seria motivo suficiente para gerar ruído de informação entre os investidores estrangeiros, levando-os a reduzir sua exposição em ativos denominados em reais, resultando assim numa desvalorização da taxa de câmbio. Em segundo lugar, as políticas ambiental e externa do governo Bolsonaro são um desastre de proporções apocalípticas: Bolsonaro e seus ministros Ernesto Araújo (Relações Internacionais) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) conseguiram transformar o Brasil no pária do mundo civilizado; seja com o completo descaso (para não dizer incentivo) com os incêndios ocorridos na floresta amazônica brasileira; como também como a (sic) mui inteligente política externa de insultar nossos parceiros comerciais, particularmente a China. Nesse contextos, os investidores internacionais antecipam retaliações comerciais em larga escala contra o Brasil, ainda mais depois do Governo Bolsonaro ter perdido o seu guarda costas, que era o Presidente Donald Trump; levando-os a fazer retiradas maciças de investimentos do Brasil, algo que foi amplamente divulgado pela grande mídia, diga-se de passagem. Sendo assim, esses fatores por si sós são suficientes para explicar a dinâmica da taxa de câmbio e dos juros de longo-prazo, passando bem longe do baixo patamar da taxa básica de juros.
Retornemos, agora, a questão da relação entre a taxa de juros de curto-prazo e a taxa de juros de longo-prazo.
A taxa de juros de curto-prazo é determinada pelo Banco Central por intermédio das operações de mercado aberto. Como o Banco Central tem o monopólio legal da emissão de meio circulante, segue-se que ele pode fixar o preço do dinheiro no patamar que achar mais conveniente. Esse patamar será determinado pelos objetivos da política monetária – que no caso Brasileiro é manter a inflação dentro das metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional – mas o regime de metas de inflação confere um grau razoável de discricionariedade na fixação desse valor. Em outras palavras, o atendimento da meta de inflação pode ser compatível com valores diversos da taxa Selic, a depender das preferências dos membros do Copom. O comportamento da inflação entre 2017 e 2019 nos sugere que o Banco Central adotou uma política monetária menos estimulativa do que a situação macroeconômica exigia.
E a taxa de juros de longo-prazo? O Banco Central pode atuar para reduzir a taxa de juros dos títulos de longo-prazo? Para responder a essa pergunta temos que entender como essa taxa é determinada. A teoria mais aceita sobre os determinantes da taxa de juros de longo-prazo é a teoria das expectativas da estrutura a termo da taxa de juros. Segundo essa teoria, a taxa de juros na maturidade de um título longo, por exemplo, um título com vencimento em 2030, será igual a média (geométrica) do valor da taxa de juros de curto-prazo (a Selic) em 2020 e das expectativas formadas em 2020 a respeito dos valores da taxa Selic de 2021 até o vencimento do título em 2030. Sendo assim, a taxa de juros de longo-prazo reflete apenas as expectativas que o mercado financeiro tem a respeito do comportamento do Banco Central entre 2020 e 2030. Se o Banco Central sinalizar para o mercado financeiro uma preocupação menor com a inflação no médio prazo e uma maior preocupação com o nível de atividade econômica; então é provável que as expectativas sobre o valor futuro da taxa de juros de curto-prazo sejam revistas para baixo, reduzindo assim a taxa de juros de longo-prazo. Já se a sinalização do Banco Central for no sentido de uma preocupação maior com a inflação teremos o resultado oposto.
E onde entre o fator risco na determinação da taxa de juros longa? Para responder a essa pergunta temos que ter clareza sobre que tipo de risco estamos falando. Quando um governo emite dívida na sua própria moeda não existe, por definição, risco de inadimplência ou de default. Isso porque o Tesouro e o Banco Central são instituições que pertencem ao Governo Central e, em última instância, o Banco Central pode emitir base monetária para comprar os títulos da dívida emitidos pelo Tesouro Nacional. O risco que importa no caso da determinação da taxa de juros de longo-prazo é o risco de perda de capital caso o agente seja forçado a vender o título antes de seu prazo de maturidade. Esse risco é, na verdade, um risco de iliquidez, ou seja, de se ver forçado a uma realização antecipada do ativo, convertendo-o em meio de pagamento.
A taxa de juros de longo-prazo, portanto, é determinada pela média (geométrica) do valor da taxa de juros de curto-prazo (a Selic) no momento atual e das expectativas formadas hoje a respeito dos valores da taxa Selic de 2021 até o vencimento do título, acrescida do prêmio de liquidez exigido pelos compradores de títulos públicos para manter títulos longos ao invés de títulos curtos na sua carteira. Sendo assim, o Banco Central pode reduzir a taxa de juros de longo-prazo de duas formas. Em primeiro lugar, sinalizando para o mercado financeiro uma preocupação maior com o nível de atividade econômica do que com a inflação num cenário em que a economia brasileira deverá operar, por vários anos com um elevado nível de ociosidade dos fatores de produção. Esse é o instrumento chamado de forward guidance. Em segundo lugar, o Banco Central pode intervir diretamente na estrutura a termo da taxa de juros comprando títulos de longo-prazo no mercado secundário e financiando essa compra com a venda de títulos de curto-prazo, mantendo assim a liquidez total da economia inalterada (e assim a taxa de juros Selic), mas diminuindo a oferta de títulos de longo-prazo relativamente aos títulos de curto-prazo. Como títulos curtos e títulos longos são substitutos imperfeitos entre si, tal operação, denominada de operação twist, deverá reduzir a taxa de juros de longo-prazo relativamente a taxa de juros de curto-prazo. Deve-se observar também que esse expediente foi explicitamente permitido pela EC do orçamento de guerra.
É fato que a partir do segundo semestre de 2020, a taxa de juros de longo-prazo começou a aumentar com respeito a taxa de juros de curto-prazo, aumentando assim a dita inclinação da curva de juros. Ora esse movimento da curva de juros pode ser explicado por dois fatores. O primeiro é um aumento das expectativas que os agentes de mercado formulam sobre o valor futuro da taxa de juros Selic. Assim, se o BCB sinalizar que, em certas condições (por exemplo, devido a prorrogação do auxílio emergencial sem contra partida de redução de despesas obrigatórias do governo), ele poderá ser elevado a aumentar a taxa selic, então os agentes do mercado financeiro irão imediatamente rever suas expectativas sobre o valor futuro da Selic, fazendo com que a taxa de juros de longo-prazo aumente relativamente a taxa de juros de curto-prazo. Mas veja, caro(a) leitor(a), que esse movimento não prova que o juro longo subiu devido ao descontrole fiscal, mas apenas aponta para o fato de que o mercado procura antecipar os movimentos do Banco Central na condução da política monetária, pois a taxa de juros é um fenômeno estritamente monetário ! Em outras palavras, o juro longo subiu porque os agentes do mercado financeiro mudaram suas expectativas sobre os valores futuros do juro curto, dado que o Banco Central sinalizou exatamente nessa direção. Assim simples.
O segundo fator que pode levar a um aumento do juro longo relativamente ao juro curto é o aumento da percepção de incerteza, a qual resulta num aumento do prêmio de liquidez que os títulos longos precisam pagar relativamente aos títulos curtos. Os economistas do mercado financeiro, entre os quais a economista-chefe do Santander, dizem que a única ou a mais importante causa de elevação da percepção de risco por parte dos agentes do mercado é a situação fiscal brasileira, pois a relação dívida pública/PIB deverá alcançar 100% nos próximos dois anos. Vários países do planeta terra, muitos dos quais sequer possuem moeda própria, como a Espanha e a Itália, ultrapassaram a muito tempo o “número mágico” dos 100% de relação dívida pública/PIB e não foram engolidos pelo “buraco negro” da crise fiscal. Em 2012, ambos os países estiveram realmente muito próximos dessa situação, embora tivessem, naquele momento, um nível de endividamento muito mais baixo do que possuem hoje. Mas o Presidente do Banco Central Europeu era Mario Draghi, não Roberto Campos Neto. Draghi afirmou numa coletiva de impressa que o BCE faria tudo o que fosse necessário para preservar a integridade da área do Euro. Imediatamente os mercados financeiros interpretaram o pronunciamento como uma sinalização clara de que o BCE iria entrar pesado nos mercados secundários da dívida pública espanhola e italiana para forçar uma queda dos spreads soberanos. Então, sem que fosse necessário o BCE tomar nenhuma atitude, as taxas de juros das dívidas públicas da Espanha e da Itália começaram a cair, impedindo assim um default soberano, o qual teria levado a implosão da Área do Euro. Draghi derrubou os juros longos com um único discurso, não foi necessário fazer uso do poder de fogo infinito que um Banco Central tem para emitir moeda e reduzir os juros de curto e de longo-prazo para o patamar que achar mais conveniente. Em tempo, Mário Draghi foi apontado ontem (dia 12 de fevereiro) para o cargo de Primeiro-Ministro da Itália.
Como o(a) leitor(a) já deve ter percebido, a elevação dos juros futuros no Brasil deve-se a inação do Banco Central do Brasil que, tendo os instrumentos para intervir pesadamente no mercado secundário de títulos da dívida pública – algo que foi expressamente permitido pela EC 10 do orçamento de guerra – preferiu não faze-lo. Minha conjectura sobre essa inação é de que a mesma se deveu a fatores puramente ideológicos: O Presidente e a atual diretoria do BCB desejam uma redução permanente do Estado Brasileiro e, para tanto, permitiram deliberadamente a deterioração das condições financeiras na economia brasileira no segundo semestre de 2020 para dar consistência a narrativa do desequilíbrio fiscal estrutural – vendida a sociedade brasileira desde o impeachment da Presidente Dilma Rouseff em 2016 pelos economistas do mercado financeiro – e a manutenção do teto de gastos, a qual exigirá o esmagamento, senão destruição, do serviço público no Brasil.
Isso posto, não posso deixar de aproveitar a reflexão acima para alertar que o Congresso Nacional cometeu um ato de insanidade coletiva ao aprovar a autonomia formal do BCB nesta semana. Agora os terraplanistas econômicos terão total liberdade para impor sua visão distorcida e equivocada sobre o papel e o funcionamento da política monetária, ou seja, terão carta branca para receitar sua cloroquina econômica.
Para finalizar este post quero enfatizar que a afirmação da economista-chefe do Banco Santander de que a elevação da taxa de juros de curto-prazo irá (sic) melhorar as condições da economia brasileira em 2021 é algo totalmente desprovido de embasamento teórico e empírico, podendo ser classificado como a “cloroquina” do terraplanismo econômico Brasileiro. Infelizmente, Jair Bolsonaro não possui o monopólio do negacionismo e do obscurantismo no Brasil. Comparado com os “negacionistas econômicos” brasileiros, Bolsonaro é apenas uma pessoa rude que não sabe se portar a mesa.
Parabenizo o Professor Dr. José Luis Oreiro, pelo artigo e peço permissão para expor que durante 31 anos trabalhei em Banco, inclusive no Santander, e 12 anos no Mercado Imobiliário. Neste período foi notório para mim, que estes mercados se modificam quando a Selic baixa. Quando vejo a nossa Ponte JK, consigo identificar, na sua arquitetura sucessiva dos arcos, ou seja, um processo de recuperação, boom, depressão e recessão. Especificamente em relação à depressão e recessão, vejo endividamento elevado, desemprego, quedas nas vendas e como aconteceu em todos os ciclos econômicos já estudados, a elevação das taxas de juros. Esta ancora, Selic, sendo tratada de forma negativa, interfere no fluxo de capitais. Pergunto se no Brasil “ceteris paribus” em relação às taxas de juros, a independência do Banco Central formalizará uma Selic, pensando de forma independente, da política, das corporações e exercerá sua função instrumental de avaliação dos meios de pagamentos, controles inflacionários, políticas monetárias expansionistas e contracionistas, etc.?
Prezados, em continuação ao que escrevi não quero deixar uma confusão sobre a definição da taxa selic, pois sabemos que o Comitê de política Monetária é o formador da taxa.