JOSÉ LUIS OREIRO
Recentemente estive participando de um debate no Corecon-DF sobre o comportamento da taxa de juros no Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=qufwmPuW3JA&t=20s). Na minha apresentação procurei focar sobre o comportamento de longo prazo da taxa de juros (Selic real ex post), o qual apresenta um nível estruturalmente elevado na comparação com a taxa de juros internacional ajustada pelo prêmio de risco país (Ver Figura 1 abaixo). Contudo, foi inevitável que o debate também abordasse o comportamento mais recente da política monetária, em particular o último ciclo de elevação da Selic iniciado em março de 2021 que elevou a selic nominal do patamar de 2% a.a para o patamar de 13,75% a.a em agosto de 2022. Na comparação internacional o Brasil foi um dos primeiros, se não o primeiro país do mundo, a iniciar o processo de “normalização” da política monetária e o fez num ritmo muito superior ao observado nos países que iniciaram mais tardiamente esse processo.
Figura 1
A elevação da taxa de juros no Brasil e em diversas partes do mundo foi uma reação a aceleração da inflação observada a nível global a partir do segundo semestre de 2020, aceleração essa que se intensificou ao longo do ano de 2021 e, notadamente, após a invasão da Ucrânia pela Rússia no dia 24 de fevereiro de 2022.
A figura 2 abaixo apresenta a evolução diária dos preços spot de três commodities, a saber: trigo, soja e petróleo no período compreendido entre 02/01/2020 a 25/08/2022. No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a existência de uma Pandemia de Covid-19. Conforme podemos verificar na figura abaixo, o efeito da pandemia sobre os preços das commodities foi nitidamente baixista no primeiro semestre do ano de 2020. O petróleo, por exemplo, acumulou um queda de 37,89% no período compreendido entre 02 de janeiro e 30 de junho de 2020. Não é de admirar, portanto, que o impacto inicial da Covid-19 tenha sido deflacionário, isto é, tenha resultado numa redução expressiva dos índices de inflação globais no primeiro semestre do ano em questão.
Figura 2
No início do segundo semestre de 2020, contudo, as economias da Europa, Estados Unidos e China começaram um processo de reabertura gradual após um longo período de lockdown em meados do primeiro semestre. Os governos e os bancos centrais dos países desenvolvidos realizaram uma forte expansão fiscal e monetária com o objetivo de atenuar o impacto sobre a renda das famílias e sobre a solvência das empresas resultante das medidas de lockdown necessárias para frear a contágio do vírus e evitar o colapso dos sistemas de saúde pública. Essas medidas foram reforçadas em 2021 nos Estados Unidos após a posse de Joe Biden como Presidente da República.
Em tese a reabertura das economias dos países desenvolvidos após as medidas de lockdown serem suspendidas não deveria trazer maiores problemas. Embora a covid-19 tenha ceifado a vida de algumas milhões de pessoas ao redor do mundo, o impacto sobre o tamanho da força de trabalho foi relativamente pequeno. Além disso, o estoque de capital físico e o nível de conhecimento tecnológico não foram afetados pela pandemia, o contrário do que pode vir a acontecer num cenário de Terceira Guerra Mundial em função da ampliação do conflito na Ucrânia ou das aventuras militares norte-americanas pelas águas do Mar da China. Sendo assim, as economias atingidas pela covid-19 deveriam se recuperar rapidamente da queda ocorrida em 2020, apresentando elevados níveis de crescimento em 2021.
No que se refere ao nível de atividade econômica a recuperação ocorreu, mas num ritmo mais rápido nos Estados Unidos do que na Europa, devido a maior amplitude da expansão fiscal realizada pelo governo americano na comparação do que aquele realizado pelos governos dos países europeus.
No entanto, quando verificamos o comportamento dos preços das três commodities em análise constatamos que em 2021 os mesmos não só recuperaram os níveis prevalecentes no período anterior ao da pandemia, como ainda fecharam o ano num patamar muito maior do que os níveis pré-pandemia. Aqui nos deparamos com um puzzle: dado que no final de 2021 as economias dos países desenvolvidos haviam conseguido, quando muito, recuperar as perdas ocorridas no ano anterior, como explicar uma elevação dessa magnitude nos preços das commodities em consideração?
A resposta elementar é que a elevação dos preços das commodities não foi resultado de um aumento da demanda, mas de uma contração da oferta. No caso do petróleo a explicação é muito simples: a OPEP reduziu a produção de petróleo em 1,92 milhões de barris por dia em junho de 2020 na comparação com maio do mesmo ano como resultado da tentativa do cartel internacional dos países exportadores de petróleo de reverter a queda de preços ocorrida entre março e abril de 2020. Como resultado desse corte a produção de petróleo da OPEP caiu ao menor nível desde o ano de 2000. Embora algumas flexibilizações na redução da produção da OPEP tenham ocorrido desde então, principalmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a produção da OPEP se manteve inferior aos níveis pré-pandemia, o que explica, em parte, a elevação do preço do petróleo.
Apenas a redução da produção de petróleo da OPEP não pode explicar o comportamento dos preços das commodities agrícolas. No caso das mesmas o comportamento dos preços entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2021 se explica por uma série de razões. Em primeiro lugar vários países em desenvolvimento reduziram suas exportações de alimentos e/ou aumentaram suas importações de soja e milho para constituírem estoques de alimentos em face ao risco de rompimento ou interrupção da cadeia mundial de suprimentos pelos efeitos das sucessivas ondas de contágio de covid-19. Em segundo lugar, a retomada rápida e generalizada do nível de atividade econômica nos países desenvolvidos e em desenvolvimento gerou um “efeito engarrafamento” na logística mundial de transporte de cargas. Os estoques acumulados de matérias-primas e bens acabados nos diferentes portos do mundo durante os períodos de lockdown não poderiam ser imediatamente transportados ao seu destino com a frota de navios de cargas herdada do período pré-pandemia. Problemas similares também ocorreram nos portos secos com o transporte de carga por trens e caminhões. Esses gargalos ou engarrafamentos na logística de transporte fizeram com que a oferta de bens intermediários como semi-condutores e fertilizantes agrícolas não pudesse acompanhar o crescimento da demanda. A elevação dos preços dos insumos utilizados na agricultura tem impacto direto nos preços das commodities agrícolas, elevando os preços das mesmas.
Ao longo do segundo semestre de 2021, contudo, os preços das commodities apresentam nítidos sinais de estabilização, com o preço da soja recuando fortemente com relação ao pico observado em maio de 2021. O preço do petróleo também apresenta um recuo nítido no período entre 20 de outubro a 03 de dezembro de 2021. Aparentemente os efeitos da pandemia do covid-19 sobre a logística mundial de transportes estavam desaparecendo, o que sinalizava uma queda dos preços das commodities e, consequentemente, da inflação global para o ano de 2022.
Contudo, a partir de meados de dezembro de 2021 a Rússia começa a realizar uma série de exercícios militares ao longo de toda a fronteira com a Ucrânia, mobilizando cerca de 200 mil homens. Rumores passaram a circular com crescente força de que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, preparava uma invasão ao território ucraniano, o que de fato ocorreu no dia 24 de fevereiro de 2022, dando início a um conflito militar que se estende até os dias de hoje e que não tem, no momento que escrevo essas linhas, nenhuma perspectiva de encerramento
A expectativa de um conflito entre Ucrânia e Rússia teve um forte impacto sobre os preços da soja e do petróleo entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022. Com o rompimento do conflito bélico, os preços das commodities disparam devido ao peso da Rússia e da Ucrânia nas exportações mundiais de petróleo (Rússia) e trigo (Rússia e Ucrânia). A imposição das sanções econômicas pelos países da OTAN a Rússia contribuiu para o agravamento do problema no curto prazo, ao impor dificuldades operacionais para a exportação de petróleo e gás pela Federação Russa. As sanções econômicas também dificultaram a produção e a exportação de fertilizantes pela Rússia, contribuindo assim para aumentar o custo de produção das commodities agrícolas, entre as quais a soja.
Embora os preços das commodities tenham recuado com respeito ao pico observado no início do conflito (um exemplo claro de over-shooting), os mesmos permanecem em patamares consideravelmente superiores aos observados em dezembro de 2021, os quais, por sua vez, eram muito mais altos do que os observados em dezembro de 2020.
Todo esse razoado nos leva a conclusão lógica de que a economia global teve o “azar” de passar por dois choques negativos de oferta de forma consecutiva, elevando a taxa de inflação por um período muito maior de tempo do que ocorreria caso esses eventos não tivessem ocorrido de forma sequencial.
Em função da natureza do recrudescimento da inflação no Brasil e no mundo nos últimos dois anos a pergunta que se coloca é como deve se comportar a política monetária ? Um choque de oferta temporário produz uma aceleração temporária da inflação e uma queda do nível de atividade econômica, a qual passa a operar abaixo do potencial. Aqui a autoridade monetária se acha diante do dilema entre estabilizar a atividade econômica, acomodando o choque de oferta com uma redução da taxa de juros; ou estabilizar a taxa de inflação ao nível pré-choque, elevando a taxa de juros. Nesse caso, não ocorre a “coincidência divina” prevista nos modelos de meta de inflação: inflação e nível de atividade econômica se movem em direções opostas.
Os bancos centrais dos países desenvolvidos optaram, a meu ver corretamente, acomodar o choque de oferta mantendo as taxas nominais de juros em torno de zero ou até mesmo negativas, com base no pressuposto de que a aceleração da inflação seria temporária. Dado que o período compreendido entre a eclosão da crise financeira internacional de 2008 e a erupção da pandemia da covid-19 foi marcado por um crescimento anêmico do emprego e do nível de atividade econômica – o que levou muitos analistas a supor que a economia dos países desenvolvidos havia entrado numa era de estagnação secular – e uma inflação inferior a 2% a.a, a decisão de acomodar o choque de oferta temporário era mais do que justificada, pois uma normalização prematura da política monetária poderia matar a recuperação das economias dos países desenvolvidos após o fim das medidas de distanciamento social, com efeitos pouco expressivos sobre a dinâmica de curto prazo da taxa de inflação.
O início da guerra na Ucrânia frustrou as expectativas dos bancos centrais de acomodar o choque de oferta. O que deveria ser um aumento temporário da inflação, tornou-se um aumento persistente. Face a recuperação do nível de emprego nos Estados Unidos e, em menor medida, na Europa, o risco que se colocava pela aceleração persistente da inflação devido a um choque de oferta era desencadear um movimento de recomposição dos salários reais por intermédio da indexação dos salários aos preços. A indexação transformaria uma elevação persistente da inflação em elevação permanente devido ao aumento da inércia inflacionária. Face a esse risco os bancos centrais dos países desenvolvidos decidiram iniciar em 2022 um processo de normalização da política monetária com elevações sucessivas da taxa básica de juros sendo realizadas pelo Federal Reserve, pelo Bank of England e pelo Banco Central da Europa. No momento em que escrevo essas linhas, a taxa básica de juros nos Estados Unidos está no intervalo entre 2,25% a 2,5% a.a, no Reino Unido está em 1,75% a.a e na Área do Euro está em 0% a.a, deixando assim o território negativo em termos nominais que se encontra a vários anos.
Na comparação com os países desenvolvidos o Banco Central do Brasil começou o ciclo de elevação da taxa básica de juros com pelo menos um ano de antecedência, e já opera com uma taxa real de juros positiva, seja ex-post ou ex-ante. Contudo, se não fosse a deflação de julho de 2022, decorrência da redução dos impostos estaduais e federais sobre combustíveis e energia elétrica, a variação acumulada em 12 meses ainda estaria acima de 10% o que mostra a impotência da política monetária para lidar com os efeitos adversos de um choque de oferta, cuja origem se encontra fora das fronteiras nacionais. Está claro que alguma elevação da taxa de juros seria necessária face a aceleração da inflação no Brasil mas, citando o Senador José Serra durante a campanha presidencial de 2010, “a diferença entre o remédio e o veneno é a dosagem”. Além disso, como o caso da deflação de julho deixou bastante nítido, o governo dispõe de mecanismos para lidar com os efeitos inflacionários de choques de oferta adversos. A redução dos impostos sobre combustíveis terá um custo de cerca de 100 bilhões de reais no acumulado em 12 meses. A elevação da taxa de juros entre março de 2021 e agosto de 2022 custou um aumento de cerca de 300 bilhões de reais no pagamento de juros sobre a dívida pública.
Se considerarmos os juros como parte integrante da despesa pública, ao invés de trata-la como uma “despesa ausente” como é feito no Brasil há mais de 20 anos, então podemos chegar a conclusão de que é possível fazer alguns compromissos entre redução de impostos (indiretos) e redução da taxa de juros no que se refere a combater os efeitos de um choque de oferta sobre a dinâmica da inflação numa economia que, por mais que os economistas convencionais afirmem o contrário, encontra-se ainda muito longe da plena utilização da capacidade produtiva.