JOSÉ LUIS OREIRO
Autor convidado pelo Corecon-DF.
Nas últimas semanas tenho escrito artigos nos quais argumento que a assim chamada “teoria convencional” (leia-se teoria neoclássica) tem uma enorme dificuldade para explicar a magnitude das diferenças internacionais dos níveis de renda per-capita. A teoria convencional procura explicar essas diferenças a partir de dois elementos distintos.
O primeiro seria aquilo que um economista liberal brasileiro denominou recentemente de “produtividade intrínseca da economia”, mas que na academia é denominada de “produtividade total dos fatores de produção” (PTF). Esse conceito, criado originalmente por Solow (1957), nada mais é do que a parcela do crescimento econômico que não pode ser explicada pela expansão dos fatores de produção, a saber: capital e trabalho. Em outras palavras, a PTF é simplesmente um resíduo que a teoria convencional não é capaz de explicar, sendo portanto “a medida da nossa ignorância” nas palavras de M. Abramovitz (1956) [ver https://blogdoibre.fgv.br/posts/ptf-ou-medida-da-nossa-ignorancia-faz-60-anos%5D.
Como explicação para os diferenciais internacionais nos níveis de renda per-capita a PTF, contudo, enfrenta várias dificuldades (Ver Oreiro, 2016, cap. 2). Em primeiro lugar, o modelo de crescimento padrão da teoria neoclássica – o modelo de Solow (1956) – assume a existência de retornos constantes de escala e concorrência perfeita nos mercados de fatores de produção, o que faz com que [devido ao Teorema de Euller-Wicksteeed] toda a produção seja gasta na remuneração dos fatores de produção de acordo com suas respectivas produtividades marginais, de forma que não sobra nada da renda nacional para remunerar os esforços de Pesquisa e Desenvolvimento de novas tecnologias. Nesse contexto, a tecnologia tem que ser obrigatoriamente tratada como um bem público, estando disponível para todos os países e todas as empresas. Sendo assim, se a dita “produtividade intrínseca da economia” for uma próxi para o progresso tecnológico, como faz Solow (1957); então, dada a inexistência de barreiras a difusão internacional de conhecimento técnico e científico implícita na hipótese de bem livre, todos os países do mundo deveriam ter a mesma PTF e , portanto, níveis similares de renda per-capita.
Mais recentemente, a teoria convencional tentou reabilitar o uso da PTF para explicar as divergências internacionais nos níveis de renda per-capita argumentando que a má-alocação dos fatores de produção – definida como uma situação na qual as produtividades marginais dos fatores de produção são diferentes entre empresas e setores de atividade – seria a causa das diferenças observadas nos níveis de renda per-capita. Essa má-alocação, por sua vez, seria o resultado da intervenção do governo na economia por intermédio seja de impostos e subsídios para setores específicos, seja pelas políticas de crédito direcionado e juros subsidiados para certas empresas e setores de atividade econômica ou ainda pela diferenças na regulamentação. Conforme argumentei anteriormente (https://corecondf.org.br/a-misallocation-ou-alocacao-ineficiente-de-recursos-explica-o-desenvolvimento-desigual-algumas-consideracoes-a-partir-da-literatura-de-crescimento-e-desenvolvimento-economico/?doing_wp_cron=1650209850.0281140804290771484375) a hipótese da má-alocação de recursos tão pouco consegue dar uma explicação satisfatória para o problema que estamos discutindo. Isso porque, por um lado, é impossível atribuir a uma causa específica as diferenças observadas entre as produtividades marginais dos fatores de produção, sendo assim uma observação empírica desprovida de teoria; por outro lado, também não é possível mensurar os efeitos que as supostas causas da má alocação teriam sobre a eficiência na alocação dos fatores, ou seja, temos uma teoria sem comprovação empírica.
Uma vez descartada a PTF como explicação para as diferenças internacionais dos níveis de renda per-capita resta para a teoria tradicional apelar para as diferenças na dotação dos fatores de produção, mais especificamente nas diferenças na quantidade de capital físico por trabalhador e na quantidade de capital humano por trabalhador. As diferenças existentes na estrutura de produção e emprego de uma economia – o seu grau de sofisticação produtiva ou complexidade econômica – é um simples reflexo das diferenças observadas na dotação de fatores de produção, não exercendo assim nenhum papel autônomo na explicação das diferenças internacionais nos níveis de renda per-capita. Em outros termos, se acrescentarmos o nível de complexidade econômica (ou alguma próxi para essa variável como, por exemplo, a participação da indústria de transformação no PIB) numa regressão de painel de dados na qual a renda per-capita seja a variável dependente, então o coeficiente da variável complexidade econômica (ou seu equivalente) deverá ser, segundo a interpretação dos economistas liberais, ou próximo a zero ou estatisticamente não-significativo ou uma combinação linear de ambos os casos, desde que estejam presentes na regressão como variáveis explicativas as próxis para a dotação de fatores de produção.
Essa assertiva, contudo, não tem nenhum embasamento empírico, sendo mais um “ato de fé” dos economistas liberais. Com efeito Gabriel et al (2020), no artigo intitulado “Manufacturing, economic growth, and real exchange rate: Empirical evidence in panel data and input-output multipliers”, publicado na Paolo Sylos-Labini Quarterly Review (https://macroeconomia-strapi.s3.sa-east-1.amazonaws.com/PSL_2020_149b2f7e12.pdf), realizam uma regressão com dados em painel para 84 países no período 1990-2011. A equação estimada é apresentada abaixo:
Onde a variável dependente é a renda per-capita do país i no tempo t (medida em PPC), e as variáveis explicativas são, respectivamente, a renda per-capita do país i no período anterior, o desalinhamento cambial do país i no período t, o desalinhamento cambial do país i no período t-1, o hiato tecnológico do país i no período t (definido como a razão entre o produto per-capita dos Estados Unidos e o PIB per-capita do país i), a participação da indústria de transformação no PIB do país i no período t, a participação do setor primário no PIB do país i no período t, a participação do setor de serviços no PIB do país no período t e um vetor Z de outras variáveis explicativas – entre as quais inflação, capital humano, gastos governamentais, termos de troca e investimento agregado (que é, por definição, igual a poupança total do país) – para o país i no tempo t.
A tabela 1 abaixo mostra a descrição das variáveis usadas e suas fontes de dados:
Os resultados da regressão em painel de dados podem ser vistos na tabela 2 abaixo.
Conforme podemos observar na tabela 2 acima a participação da indústria de transformação no PIB tem um impacto positivo e estatisticamente significativo sobre o nível de renda per-capita dos países da amostra, principalmente para os países com nível intermediário de hiato tecnológico como é o caso do Brasil, mesmo controlando-se para os efeitos do capital físico (investimento total) e do capital humano. Já a participação do setor primário no PIB dos países da amostra tem um sinal negativo para todos os países da amostra, independentemente no nível do hiato tecnológico, sinal claro da validade da doença holandesa e/ou da maldição dos recursos naturais. Daqui se segue que a estrutura produtiva tem um impacto autônomo sobre o nível de renda per-capita dos países, ou seja, a dotação de fatores não é a explicação única ou fundamental para as diferenças internacionais nos níveis de renda per-capita. Ao acrescentar a variável complexidade econômica na regressão para todos os países em desenvolvimento, observa-se uma redução do coeficiente da participação da indústria de transformação no PIB, indicando assim que o efeito positivo da indústria de transformação sobre o nível de renda per-capita dá-se fundamentalmente pela sofisticação e/ou complexidade das atividades manufatureiras na comparação com as demais atividades produtivas.
Os economistas liberais argumentam que as vantagens comparativas dos países decorrem da sua dotação de fatores de produção. Se fosse assim, a economia da Coréia do Sul deveria ter se especializado na produção de produtos agrícolas, dado que o estoque de capital per-capita era extremamente baixo (muito mais baixo do que no Brasil) nos anos 1950. Mas ao invés de seguir as doutrinas ensinadas pelos economistas liberais a Coréia do Sul, tal como o Brasil, preferiu adotar as políticas que os países da Europa Ocidental e os EUA adotaram para se tornarem países ricos, ou seja, políticas que incentivaram a industrialização e sofisticação da estrutura produtiva e, portanto, a construção de vantagens competitivas dinâmicas[ sobre esse tema ver Reinert, 2016]. O termo fator de produção é, por sua vez, uma construção teórica enganosa, pois dá a entender a existência de uma relação de causalidade unidirecional da dotação de fatores para o nível de produção de um país, esquecendo-se do fato de que o capital nada mais é do que um conjunto de bens que são produzidos dentro do sistema e, portanto, existe uma relação de causalidade bidirecional. Além disso, o termo fator de produção desvia a atenção dos economistas para a questão da alocação estática de recursos ao invés da questão dinâmica do ritmo de criação de recursos. Nas palavras de Setterfield
“The use of produced means of production implies that the ‘scarcity of resources’ in processing activities cannot be thought of as being independent of the level of activity in the economy. What is chiefly important in processing activities is the dynamic propensity of the economy to create resources (that is,
to deepen and/or widen its stock of capital) rather than the static problem of resource allocation” (Setterfield, 1997, p. 50).
Em suma, a teoria neoclássica não consegue fornecer uma explicação satisfatória para explicar a magnitude das diferenças internacionais de renda per-capita entre os países. Dessa forma, ela tão pouco pode ser usada como base para a formulação de estratégias para a retomada do desenvolvimento econômico no Brasil.
Referências
Gabriel, L.F; Riberiro, L.S; Jayme Jr, F.G; Oreiro, J.l (2020). “Manufacturing, economic growth, and real exchange rate: Empirical evidence in panel data and input-output multipliers” PSL querterly Review, Vol. 72, n.292.
Oreiro, J.L. (2016). Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva Keynesiana. LTC: Rio de Janeiro.
Reinert, E. (2016). Como os países ricos ficaram ricos … e por que os países pobres continuam pobres. Contraponto: Rio de Janeiro.
Setterfield, M. (1997). Rapid Growth and Relative Decline. Macmillan Press: Londres.
Solow, R. (1956). “A Contribution to the Theory of Economic Growth”. The Quarterly
Journal of Economics, Vol. 70, N.1.
Solow, R. (1957). “Technical Change and the Aggregate Production function”. The Review of Economics and Statistics, Vol. 39